As imagens do treinador do FC Porto a reagir de forma ostensiva, agressiva e indesculpável contra um colega de profissão, fez-me lembrar o título de um filme de 1976, “Feios, Porcos e Maus”, do realizador italiano Ettore Scola.

O filme não tem nada a ver com futebol, é sobre uma família romana que vive numa favela da capital italiana. Sátira feroz e impiedosa, espantosa, amoral e rude, sátira desconcertante, hilariante e grotesca, resume, nalgumas dezenas de minutos divertidos e brutais, a miséria profunda da sub-humanidade da civilização Ocidental, que atingiu o cume do progresso técnico, social e económico, ao mesmo tempo que guardou toda a alucinante capacidade humana para a indignidade, a desumanidade e a porcaria.

Que tem isto a ver com o futebol? Nada, claro. Excepto o facto de a mesma porcaria imperar cada vez mais no futebol global, uma porcaria que torna o mais bonito dos jogos, pela estética, pela imprevisibilidade, pelo ritmo, uma cloaca irredimível. O problema é que se tornou um jogo ao serviço de um ethos colectivo degradado, espelho e reflexo do Mundo actual, que por sua vez influencia. Recordando a “Tribo do Futebol”, de Desmond Morris, estamos perante uma actividade quase tribal, com tribos (as do futebol) reunidas em torno de diferentes equipas – clubes -, em luta pela hegemonia, mas sobretudo em luta contra os seus rivais.

Somos então, cada um de nós, membros de tribo, seja ela o Benfica, o Porto ou o Sporting, com chefes, com sábios e heróis, com tem símbolos, bandeiras e hinos. Somos nós os seus guerreiros, lutamos pela nossa tribo mesmo contra a razão, mesmo contra os valores que nos guiam fora dela, os valores da sociedade a que pertencemos todos. Por ela, a nossa tribo, estamos dispostos a fazer qualquer coisa, feia, porca ou má, como verdadeiros fanáticos.

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O que está hoje mal e o que está hoje bem no futebol?

O que está bem? O jogo.

Quase todo o resto está mal: violência, hooliganismo, estupidez, cacofonia, ganância.

Violência: deve haver poucos jogos mais duros, que causam mais lesões e em que os jogadores, conscientemente ou não, provocam mais dor, sofrimento e incapacidade aos colegas de profissão. No Brasil, estudo recente revelou que 55% de todas as lesões nos joelhos resultam da prática do futebol. E são inúmeras as vezes em que os jogadores, “sem querer”, pisam o calcanhar dos adversários, lhes acertam com a planta do pé (armado de pitons) na perna, esticam o cotovelo na direcção de um olho, de um nariz ou de um queixo.

Hooliganismo: as claques são gangues organizados, ou grupos desorganizados de desordeiros, não menos perigosos. Deslocam-se em manada, atacam em grupo, isolam e destroem as suas presas, humilhando-as ou agredindo-as. Podia ser belo, mete medo (e afasta as famílias).

Estupidez: traço mais marcante da organização actual do futebol, quer ao nível do dirigismo  quer da parte técnica, que inclui treinadores, preparadores físicos e fisioterapeutas. E do que se trata é da profunda, e contudo extraodinariamente ligeira, falta de qualidade intelectual de boa parte dos seus agentes. Ouvir certos dirigentes desportivos é escutar afirmações de completa indigência mental. Alguns treinadores alimentam o anedotário nacional, verdadeiros “bodes respiratórios” do sistema que se alimenta deles e os descarta à primeira oportunidade.

Cacofonia: enxameiam as televisões quase todos os dias, gritam ao mesmo tempo, afirmam tudo e o seu contrário com facilidade, defendem com unhas e dentes e contra a razão e o bom senso os interesses do clube que é a sua casa, a sua terra, o seu clã. Alguns seguem cartilhas com argumentos a utilizar, outros inventam, outros tentam ser tão sectários quanto possível, para continuar a ser recrutados para a causa que professam – do Sporting, Porto ou Benfica. E gritam, protestam, interrompem, insultam, pois só assim “o canal mantém as audiências” (disse-me há dias um desses comentadores)…

Ganância: no futebol circula dinheiro em excesso, por ele gerado e feito circular. É de mais para jovens de quase sempre modestas origens, de repente dispondo de muito dinheiro; não lhes peçam capacidade para gerir uma fortuna, manter o equilíbrio, agir correctamente e não perder a cabeça à primeira contrariedade. É impossível. E o dinheiro encoraja a ganância, a sede de enriquecimento de muitos, dos presidentes de clubes aos diversos membros do sistema, sem esquecer os agentes desportivos. O bolo disponível é cada vez maior e mais mal distribuído: o orçamento dos três grandes é incomparável com o resto das equipas, na Europa o orçamento dos grandes campeonatos é incomparável com o português.

Hoje em dia, em Portugal, todos se parecem, seja Porto, Benfica ou Sporting; seja Pinto da Costa, Bruno de Carvalho, Filipe Vieira; ninguém acredita neles a não ser os seus adeptos, que acreditam em tudo, seja no que for, nunca há penaltis justos contra a sua equipa e os seus jogadores são deuses.

A loucura não é só portuguesa; na Grécia, o Presidente do PAOK entrou em campo armado, Far-West no levante europeu. O campeonato grego foi suspenso. Ninguém morreu, mas a tragédia espreita.

E em Portugal?

As maiores vítimas do jogo de luz e sombras em que se transformou o futebol são os próprios jogadores (mentira, são os adeptos, mas esses não contam, parece). Muitos soçobram, deprimem, desistem. Tirados jovens do enquadramento familiar, deslumbrados com o estatuto de vedetas (quase) instantâneas, com a fama, mais tarde ou mais cedo vem a decepção, a queda de Ícaro no abismo da vaidade, seja por força de uma lesão, do final da carreira, do desligamento abrupto das luzes da ribalta. E voltam à obscuridade que os viu crescer, descrentes, desiludidos e deprimidos.

E o show continua, o show nunca para. Talvez acabasse, se todos juntos nos fartássemos dele e deixássemos de ir aos campos, de ver os jogos na televisão, até de ouvir os relatos. Talvez, nesse caso, o belo jogo, jogado com os pés, o mais imprevisível (e impreciso) dos manipuladores de bola (com a mão é mais fácil…), voltasse a ser o que em tempos foi:

Um belo desporto.