O que se passa com o bom senso, essa qualidade que Descartes dizia ser a mais bem distribuída de todas?

O Estado espanhol fez de Puidgemont, um obscuro político catalão destinado a não ser mais do que um fogacho no fogo-de-artifício da História espanhola, quase um mártir. Agiu contra as regras do bom senso, que teriam aconselhado outro comportamento do governo de Madrid, evitando um extremar de posições que tornasse a fractura da sociedade catalã irreversível, a relação de metade da sua população com Espanha impossível e o futuro uma incógnita.

O conceito de bom senso foi cunhado na nossa civilização greco-romano-cristã, com Aristóteles a referir-se à frônese –  justa medida, bom senso ou virtude do pensamento prático-, assente em dois elementos essenciais para alcançar uma vida feliz, o discernimento e o equilíbrio. É essa a essência do bom senso, sabedoria prática que leva os homens a escolher o caminho certo para uma vida feliz. Nem Puidgemont e os independentistas, nem Madrid e os centralistas usaram de discernimento suficiente para atingir o equilíbrio. Tiveram pouco senso.

Já o Brasil, em tempo de prisão de Lula, é outro caso de falta de senso. Não sei nem me cabe saber porquê, mas um país mergulhado na corrupção, que é um continente e tem todas as riquezas do Mundo, um país onde a justiça se apoderou da política, as ruas estão cada vez mais inseguras e a prisão do antigo presidente divide a opinião pública e ameaça levar insurreição às ruas (e às fardas?), esse país, para dizer o menos, tem falta de bom senso.

Recorro neste ponto a Descartes, que já citei: se a todos foi distribuída em doses iguais a capacidade de ter bom senso, não basta possuí-lo, ser racional e bondoso, é essencial usar bem essa capacidade para atingir o equilíbrio. E se não há no Brasil equilíbrio, se a vida quotidiana se pauta por excessos e florilégios verbais, é porque os brasileiros, da decisão individual à colectiva, escolhem trilhar caminhos que privilegiam os seus interesses individuais, a ganância e a cupidez, fazendo escolhas erradas. Andam depressa de mais e afastam-se do método e da paciência que, diz também Descartes, permite juízos mais correctos.

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Bruno de Carvalho e o Sporting são, por estes dias em Portugal, outro exemplo de pouco senso. Numa casca de noz cabem quase todos os erros de discernimento possíveis, da pressa excessiva ao excesso de palavras, da errada utilização dos novos meios (neste caso, do FB) à violação da regra de senso não apenas bom mas comum de que se deve elogiar em público e criticar em privado, sem esquecer outro preceito de bom senso: fazer um inimigo de cada vez (quanto mais todos!). Mas talvez o presidente do Sporting devesse recordar sobretudo a máxima de Sun Tzu: “quem sabe quando pode lutar e quando não pode, vencerá”.

Poderia dar aqui dezenas de exemplos, limito-me a referir mais três, de natureza distinta e unidos apenas pela falta de bom senso: Trump a governar por twitter, o que já o levou a ser o Presidente norte-americano com maior número de mudanças no seu governo;  as televisões portuguesas a ocupar as emissões em dezenas de horas seguidas com futebol, em directo, em diferido, resumido e em palavrosos painéis de comentários a rasar a inanidade; regimes democráticos a resvalar para o iliberalismo, regimes iliberais a resvalar para o autoritarismo, regimes autoritário que correm o risco de se tornar ditaduras.

E há, claro, o papel do radicalismo em tudo isto, a suprema insensatez. O radical hoje já não está à extrema da direita ou da esquerda chamada ainda de extrema, que são cada vez mais correntes, já não radica em posições extremadas como o nacionalismo ou o localismo, as políticas anti-imigração (os “muros”) ou anti-globalização, cada vez mais aceitáveis, não é o politicamente correcto, que obriga à auto-censura para evitar expressões que possam insultar ou excluir pessoas de determinado género, estrato social ou com deficiência física. Mesmo os antigos tabus, soluções impossíveis de aceitar em sociedades cristãs, ou até muçulmanas, se tornaram habituais, já não provocam motins, moções de censura, opróbrio popular; é o caso do aborto, da eutanásia, do consumo de drogas leves, da opção de género.

O novo radical situa-se hoje ao centro. O que cada vez mais é encarado com desconfiança é o discurso moderado, a procura do equilíbrio, a rejeição do maniqueísmo. Nunca como hoje a pertença a um clã, a um grupo, clube ou partido, foi tão necessária para os humanos se sentirem parte de alguma coisa e como tal protegidos. Nunca como hoje a independência tornou os homens e as mulheres tão frágeis e impotentes.

Quem não é do Benfica, do Sporting ou do Porto; quem não pertence à maçonaria ou outro grupo semelhante; quem não milita no PSD, no PS, no BE, no CDS ou no PCP; quem não pode reivindicar pertença a um grupo minoritário qualquer, pois bem, esse será um pária, senão aos olhos dos outros pelo menos aos seus, e não terá protecção.

Este é de novo o tempo das bandeiras. Nas redes sociais (é uma obsessão, reconheço) corre livre o disparate, o insulto e a ignorância. Não está longe o tempo em que exigiremos governar por votação instantânea na Internet, decidindo questões magnas para as nossas sociedades através de um sistema que não será muito diferente dos likes do FB e das estrelas com que, cada vez mais, classificamos os serviços que nos são prestados. O tempo da reflexão madura, ponderada, reflectida, informada, chegará ao fim.

São muitas as razões para a morte do bom senso, cada vez mais evidente. O profundo aumento do desequilíbrio entre ricos e pobres, a nível global, não é decerto o caminho mais correcto para o equilíbrio e a felicidade das sociedades humanas, mas por que razão continuamos a trilhá-lo é um mistério. É difícil de explicar a pressa com que vivemos, de que o gesto de fechar a porta do elevador carregando no botão para ganhar um segundo é paradigma. A nova guerra fria mostra até que ponto pode chegar a insensatez humana.

Que fazer? Resta continuar a defender o uso reflectido e ponderado do discernimento visando o equilíbrio das decisões e dos seus resultados. Mesmo que isso seja, permitam-me a expressão, “uma seca”, que não venda, que não receba likes ou partilhas. São opções, às vezes difíceis, mas prefiro ser menos popular e ter menos leitores – ou espectadores, ou críticos, ou fãs – do que escolher um lado, ser de extrema-esquerda ou extrema-direita, nacionalista, comunista ou ecologista, acolher-me a um partido político, a uma agremiação, a uma sociedade secreta, tendo outrossim de defender as teses propugnadas pela entidade à qual prestei vassalagem. Prefiro a liberdade da minha própria opinião em busca do caminho certo para uma vida feliz, mesmo que isso me condene a algum tipo de ostracismo.

Bom senso requer-se. É escasso e valioso.