Após os catastróficos resultados obtidos durante a década de 1990, os estudos internacionais têm revelado uma extraordinária evolução dos alunos portugueses. Portugal foi o país que, no TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Studies), maiores progressos fez a Matemática durante os últimos 20 anos, evidenciando até, em 2015, desempenhos superiores aos da Finlândia, vista tradicionalmente como tendo um dos melhores sistemas de ensino do mundo. Também no PISA 2015 (Programme for International Student Assessment), pela primeira vez, os alunos portugueses situaram-se acima da média da OCDE em cada uma das três componentes em avaliação: Literacia Científica, Matemática e Leitura. O ano letivo de 2014/2015 fica igualmente marcado por uma prodigiosa melhoria do sucesso escolar, traduzida numa redução drástica das taxas de retenção em todos os anos de escolaridade, do 1.º ao 12.º, redução essa confirmada no ano seguinte (dados disponíveis no sítio da Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência).

Estes resultados muito positivos foram obtidos graças à implementação, por parte de diferentes governos, de políticas educativas com alguma coerência global, que transformaram o país num verdadeiro exemplo para a comunidade internacional: entre 2000 e 2015, sempre num espírito de relativa continuidade, introduziram-se provas no final de cada ciclo do ensino básico, apostou-se na formação de professores, enriqueceram-se currículos, estabeleceram-se objetivos claros para o ensino e exigiu-se qualidade aos manuais escolares através do processo de certificação.

Em contra-corrente, o atual Ministério da Educação parece empenhado em romper drasticamente com este rumo de sucesso, tão firmemente mantido pela mão de governantes dos mais diversos estilos e cores políticas. Para o efeito, tem apresentado medidas radicais desprovidas de qualquer suporte técnico ou científico, que visam apenas liquidar esta continuidade e comprometer os pilares em que assenta o tão duramente conquistado sucesso dos alunos portugueses.

Em 2015, sem qualquer explicação, a atual maioria aboliu as provas finais do 1.º e do 2.º ciclo, pondo assim fim a uma preciosa série temporal que permitia a monitorização da evolução do sistema de ensino de ano para ano, identificando pontos positivos e eventuais fragilidades a corrigir. Não existe, atualmente, qualquer instrumento que permita medir o que os alunos efetivamente aprenderam no final destes dois ciclos cruciais, tornando impossível a deteção atempada de eventuais degradações da qualidade do ensino que possam vir a comprometer o sucesso futuro dos jovens. Note-se que a redução recente das taxas de retenção foi sancionada por exames nacionais. Como interpretar, a partir de agora, a evolução dessas taxas? De seguida, no caso da Matemática, o Ministério da Educação decidiu de forma totalmente gratuita liquidar a certificação de manuais escolares. É consensual que este processo levou, nos últimos dez anos, a uma melhoria muito significativa dos livros utilizados pelos alunos portugueses. Hoje, e tal como acontecia nos anos noventa, qualquer pessoa pode elaborar um manual e colocá-lo no mercado, não ficando de forma alguma salvaguardada a respetiva qualidade científica e pedagógica. Trata-se, na prática, de um grande retrocesso: este processo sustentava o trabalho dos professores, que outrora eram frequentemente confrontados com erros científicos nos manuais.

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Se tudo isto é já suficientemente gravoso, eis que o Ministério da Educação publica, durante o mês de agosto e a escassos dias do arranque do ano letivo, uma profundíssima revisão curricular que rompe abruptamente com tudo o que tem sido o ensino em Portugal. Jorge Buescu apelida-a, na edição do Público do passado dia 12 de setembro, de «Processo de Revolução Educativa em Curso» (PREC). E, de facto, merece bem a designação. Para evitar este tipo de guinadas súbitas, a lei portuguesa estabelece prazos mínimos para a implementação de orientações oficiais que rompam com as vigentes (20 meses). Há assim tempo para efetuar consultas públicas, promover debates, ouvir especialistas, informar as famílias dos contornos das reformas e preparar novos materiais adequados aos novos programas. Sobretudo, deve ser dado tempo aos professores para tomarem conhecimento das alterações preconizadas e assim poderem idealizar as melhores estratégias para as colocar em prática: em última instância, é o trabalho dos professores que permite conduzir os alunos ao sucesso.

Para contornar esta imposição, decidiu o Ministério da Educação apelidar esta substituição dos currículos de «flexibilidade curricular», reduzindo os 20 meses a 20 dias. Vai aplicar desde já – e sem qualquer consentimento dos encarregados de educação dos alunos envolvidos – os novos programas a “turmas experimentais” dos 1.º, 5.º, 7.º e 10.º anos de escolaridade, abrangendo cerca de 20% das escolas do país e generalizando estas disposições a todos os alunos no próximo ano letivo. Tudo isto sem ouvir os professores, com exceção de escassos dirigentes de associações profissionais já em si com muito pouca representatividade no meio escolar. Por maior que seja a sua dedicação, temos neste momento nas escolas professores desorientados e perplexos com estas diretivas súbitas.

Pretende-se promover nas escolas um ensino assente em «projetos interdisciplinares». A interdisciplinaridade e a integração de conhecimentos oriundos de áreas diversas são fundamentais no desenvolvimento cognitivo das crianças e jovens. Contudo, colocar o “interdisciplinar” a montante do “disciplinar” é um erro há muito identificado: é como atirar uma criança com uma raquete na mão para dentro de uma piscina e esperar que aprenda a nadar e a jogar ténis em simultâneo. As disciplinas têm especificidades próprias e necessitam de um estudo dedicado, sério e exigente. E onde se encontra o tempo para realizar esses projetos? É simples: cortam-se até 25% dos conteúdos de todas as disciplinas e em todos os níveis. Sim, leu bem: 25% de todas as disciplinas e em todos os níveis. Por exemplo, em Matemática, os alunos abrangidos vão aprender menos do que o que era determinado pelo Programa do Secundário de 1998, menos do que o que se encontrava previsto no Programa do Ensino Básico de 2007, e, sobretudo, muito menos do que os colegas que, este ano, não integrarão este projeto. Os documentos que regem os cortes a aplicar, ditos Aprendizagens Essenciais, para além de extremamente vagos e inúteis enquanto orientadores do ensino, são de uma qualidade que em nada dignifica o país, apresentando erros técnicos e científicos de grande gravidade (veja-se, a este propósito, o comunicado da Sociedade Portuguesa de Matemática).

Se é Encarregado de Educação, é importante que determine o mais depressa possível se o seu educando se encontra numa turma experimental e, se for o caso, exigir junto da escola que lhe sejam ministrados todos os conteúdos previstos nos programas efetivamente em vigor, o que lhe permitirá ficar em igualdade de circunstâncias com os colegas que frequentam uma turma regular, em termos de conhecimentos que irá adquirir e de capacidades que irá desenvolver. Os danos provocados por este experimentalismo selvagem, que durará um ano letivo completo (ainda para mais o primeiro do ciclo), serão difíceis, senão impossíveis, de reverter.

Filipe Oliveira é Coordenador do Programa e Metas Curriculares de Matemática de 2013 e Professor no ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa