A polémica da lista VIP de contribuintes é um caso sério demais para ser tratado com tanta leviandade. A lista VIP não é um mero caso político, é um problema de confiança na máquina fiscal.
É determinante, por isso, que não se misturem alhos com bugalhos. Mas também que todos assumam os deveres mais básicos que a administração pública tem para com todos nós: transparência a responsabilidade.
Vamos por pontos.
1.
O caso começou com algumas notícias que passaram (até a mim) bastante despercebidas. O PS, no último debate com Passos Coelho, desafiou o primeiro-ministro a dizer se havia lista VIP ou não. Passos Coelho usou um desmentido da máquina fiscal para garantir que não havia lista.
Na quinta-feira, porém, a revista Visão veio reiterar a história, contando a lista existia, que foi comunicada numa reunião interna e que a ordem partiu do secretário de Estado. Paulo Núncio reagiu com uma ameaça de processo sobre a revista.
Na sexta-feira, o vice-presidente do PSD deixou uma sugestão amigável: que se fizesse uma auditoria para esclarecer tudo. Na segunda seguinte, de manhã, o secretário de Estado chegou a mandar uma resposta à pergunta do Observador, dizendo que a questão não fazia sentido. Duas horas depois, ligou de novo dizendo que nós, eu, tínhamos interpretado mal e que admitia a hipótese fazer uma auditoria. O anúncio oficial chegou ao final da tarde, vindo do gabinete de Maria Luís Albuquerque.
Hoje, quarta-feira, sabemos por comunicado que o chefe do Fisco se demitiu precisamente pela tal lista. E ficamos a saber que há dois dias disse ao secretário de Estado que, não havendo lista, havia alguma coisa. Alegadamente (“to be seen”, como dizem os ingleses), que foram ponderados e testados novos métodos de proteção dos dados de contribuintes. Ou, na versão da carta do demissionário à ministra, que foi implementado um “mecanismo de alerta de determinados contribuintes e verificação da legalidade das respetivas consultas”.
Pior, muito pior, temos um som do chefe de auditoria do Fisco falando claramente de um “pacote” de contribuintes “VIP” cuja consulta de processos fiscais pode ser automaticamente controlada “online”. Leu bem, isto não é uma ponderação nem um teste, é um processo em curso.
2.
Feita a cronologia, há duas conclusões fáceis de retirar desde já: o Governo não pode simplesmente dizer que as coisas não estavam “100% corretas”, como ouvi um deputado do PSD dizer. Não pode dizer que se propôs ir à Assembleia (melhor seria!) para esclarecer. Tem que dizer tudo o que se passou e dizer já.
Segundo: tal como o chefe do Fisco disse demitir-se para “proteger a Autoridade Tributária”, o mínimo de bom senso levaria o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais a fazer o mesmo – para proteger o primeiro-ministro, se quiser um pretexto simpático. Soubesse ou não da lista. Um membro do Governo é responsável pelo que sabe e também pelo que não sabe, mas devia saber.
Já agora: num caso destes, com as proporções que ganhou, o que devia estar a acontecer não era alguém apresentar a sua demissão: era alguém demitir quem é responsável. Só assim a autoridade ficaria intacta.
3.
Agora o essencial: em Portugal temos que fazer uma escolha muito séria: ou queremos que exista sigilo fiscal ou não queremos. Pelo mundo fora, encontramos as duas hipóteses e qualquer uma delas tem boa defesa. Mas alguns pontos têm que ficar muito claros:
- Havendo sigilo fiscal, ele não pode ser para alguns, mas para todos;
- Havendo sigilo, a máquina fiscal tem que ser particularmente clara nas regras da sua própria atuação;
- Havendo sigilo, a máquina fiscal tem que garantir que nunca há consultas indevidas existiram a processos de qualquer contribuinte, sancionando sem hesitação quem tenha abusado do seu poder. Chama-se esse contribuinte Pedro, Paulo ou Anacleto. Fazer isto não é perseguição – é evitar muitas perseguições.
É por isto tudo que o Governo e os responsáveis da Autoridade Tributária devem mais do que uma explicação ao país. Detalhada e consistente. Não só sobre a lista VIP, mas sobre como atua no dia-a-dia, que garantias nos dá, que poder tem e que fronteiras não ultrapassa. Insisto neste ponto, porque ele é decisivo: este não é um pequeno caso sobre a confiança no Governo: é sobre a confiança na máquina fiscal.
4.
A máquina fiscal é um dos casos exemplares de reformas bem executadas pelo país nos últimos anos. Começando com Paulo Macedo, prosseguindo até hoje, com a tutela de Paulo Núncio, a Administração Tributária faz hoje coisas que nos pareciam inimagináveis apenas há uma década: cruza dados, anda atrás de nós (como lhe compete), digitalizou-se e, por incrível que pareça, até já pôs a maioria do país a pedir faturas – seja por causa de um carro sorteado, ou pelas deduções que só contam se tiverem prova de fatura correspondente.
Hoje, o Fisco é um dos trunfos maiores do ajustamento e modernização do Estado que temos para apresentar. Aos credores e aos contribuintes.
Convinha muito não estragar o retrato.