As regras em Portugal parecem ser estas. Quando um político é perseguido por rumores ou fugas de informação acerca de uma hipotética irregularidade, por mais leve que seja, e esse político não é um dos nossos, temos todo o direito de presumir que é culpado, esperar que confesse, exigir a sua demissão, e achar um escândalo ainda o não termos visto devidamente algemado perante uma câmara de televisão. Porque é matéria política, para ser devassada com todo o alvoroço.

Pelo contrário, quando um político é detido pela polícia e formalmente constituído arguido por indícios de prática de crimes graves, mas esse político é um dos nossos, então temos a obrigação de presumir a sua inocência até à transição do processo pela última instância de recurso possível, e devemos indignar-nos com qualquer fuga de informação ou mesmo com qualquer reportagem ou editorial que a imprensa se atreva a dedicar ao caso. Porque é matéria jurídica, para ser estudada com todo o recato.

Estas controvérsias, porém, servem apenas para consumo público. A culpa ou a inocência dos visados, a regularidade dos procedimentos judiciais ou a justeza do trabalho da imprensa só comovem os oligarcas durante a gravação no estúdio. Longe dos microfones, o que verdadeiramente lhes importa é o modo como tudo isso vai afectar a distribuição do poder por via eleitoral. No regime vigente, os escândalos deixaram de fazer parte do domínio da reprovação moral ou do apuramento jurídico da verdade. São, simplesmente, ingredientes do campeonato de futebol político.

A maneira como os “casos” são discutidos explica, em parte, que estes “casos” aconteçam. Qualquer prevaricador sabe que poderá contar com o sectarismo dos seus correligionários para o defenderem, mesmo contra toda a evidência. O clubismo é, assim, uma garantia de impunidade parcial. Pode não poupar o delinquente à justiça, mas confunde a opinião e limita o ostracismo social.

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Isso é assim porque a oligarquia, embora ralhe muito em público contra a corrupção, ainda não está totalmente convencida da possibilidade de a dispensar. Se a corrupção fosse apenas uma questão de ganância individual, talvez. Mas a corrupção faz parte do sistema de poder, tal como se desenvolveu neste regime.

Noutras épocas, o poder político quase se confundia com as hierarquias sociais ou profissionais. Isso acabou, tal como também acabaram as organizações partidárias capazes de mobilizar correntes de opinião ancoradas em identidades sociais ou em ideologias políticas. A velha sociedade e a teoria gramsciana da hegemonia já deram o que tinham a dar. O que resta, para dominar uma sociedade que, por si, não acredita, não apoia e não respeita, embora vote? Essa máquina que é Estado, o grande Estado deixado pelas aspirações desenvolvimentistas, sociais e justicialistas do passado.

O Estado, porém, é uma máquina pesada, que só gera poder a favor de um partido ou de uma facção quando usada implacavelmente, para além de todas as virtudes e castidades. O equilíbrio orçamental é muito bonito, mas é preciso não hesitar em multiplicar os contratos, parcerias, subsídios, e empregos que suscitam simpatias, fidelidades e contrapartidas; a transparência é excelente, mas é proibido ter escrúpulos quando se trata de explorar a promiscuidade, as facilidades e as trocas de favores para alargar redes de influência e torná-las mais espessas; a separação de poderes é comovedora, mas é impensável vacilar perante a possibilidade de conjugar ministérios, bancos e tribunais na protecção dos amigos e na perseguição dos inimigos. E sendo assim, é natural que a oligarquia, na avaliação de um político, tenda a apreciar a aptidão para este género de exercícios muito acima de todas as outras características, como a integridade pessoal. Sim, este poder corrompe mesmo.

A busca da fortuna pessoal e a sua exibição descarada (o bling-bling) também fazem sentido no quadro descrito acima. Talvez convenha a um político esconder as origens da sua riqueza, mas não faz sentido dissimular a sua existência. Onde só o poder conta, a aparência do poder também conta, por mais comprometedora que seja: o carro preto com motorista, a classe executiva, a roupa cara, o restaurante de luxo, a “casa de sonho” das agências imobiliárias, o ar de figurante de revista cor-de-rosa, etc. Quem é que, sem os devidos adereços, seria levada a sério numa sociedade geralmente devotada ao consumo e à ostentação? É verdade: há quem ainda prefira modéstias. Mas para isso, é preciso uma abnegação ou uma segurança pessoal que falta à maior parte da oligarquia, que não pode dispensar-se de parecer aquilo que é ou quer ser. Não vale a pena tentar distinguir o que aqui é avidez pessoal e cultura política. É a fase hip-hop do regime.

O fogo do céu ainda não consumiu toda a oligarquia, o que quer dizer que há certamente alguns inocentes na aldeia. E haverá também, entre os pecadores, uns mais culpados do que os outros. Mas o próprio sistema de poder criou as condições da corrupção, ao mesmo tempo que diminuiu geralmente a capacidade de ver e julgar para além das adesões e repulsas tribais. Bastará a justiça, só por si, para corrigir esta tendência? Não me parece. Se o sistema não mudar, bem podem as instituições funcionar “normalmente”, como agora se diz com tanta complacência.