1. Não se largam, não se desprendem, não se soltam (cada um sabendo que quando o fizer é de vez) mas fazem um bocadinho de aflição, tanto ruído. Inaugurações, espectáculos, fóruns, deslocações, um carrossel de eventos e lá estão eles, operando e agitando-se como talvez democracia alguma terá visto.
Não ocorrendo ao chefe do Estado e ao chefe do governo que o sistema não carece da demonstração física de tanta presença “afectuosa” ou que a política não pressupõe — e menos recomenda — que ambos nos entrem assim, casa dentro. Assim, muitas vezes juntos mas sempre num incessante afã de ocupação do espaço mediático através do qual aliás, se espiam, se medem e desconfiam (um do outro), contando espingardas.
Lembram até o Capuchinho Vermelho, “é para melhor te comer”, pois ambos sabem que “isto” não dá para os dois, um devorará o outro. E vontade não lhes falta, mas enquanto não chega “o” momento (e sim, eles são igualmente bons na avaliação dos “timings”) instalaram-se na ideia de que acreditamos na bondade intrínseca desta extenuante “cooperação”. Tão amável, tão harmónica, tão deslizante (e tão improdutiva). O que é preciso é paz, entendimento, compreensão e, sobretudo, nada de pessimismos. Não vai o país tão bem, leve e solto? Não está o povo tão mais “descrispado”, não se enterrou de vez a “austeridade” que passou até a chamar-se “medidas adicionais” (outro carinho face ao povo dantes martirizado pela governação “austeritária” de Passos Coelho)?
Sim, é um mistério, mas eles acreditam que nós acreditamos “nisto”. E neles, o que é pior, apesar de tão inventivos, criativos, operativos (e tão cansativos).
Nunca achei que a política casasse bem com o optimismo, mas com este “optimismo afectuoso” ainda menos casa, conforme, se não estou enganada, qualquer ser normalmente constituído se apressará a concordar.
2. O “isto”, um dia, pode não acabar bem. Peço desculpa pelo pessimismo – lá está — tão deslocado num tempo feito de açúcar mas onde tudo ocorre como nas “construções da areia”: castelos, torres e coisas fantásticas, aparentemente seguras e sólidas, mas depois vem o mar que é a sério e desfaz os castelos, que eram a brincar e por isso apenas me interessa hoje saber o montante da factura que os meus filhos e netos irão pagar amanhã. Com os algarismos que radiografam a saúde do país valsando entre o amarelo e o laranja avermelhado, em que se há-de pensar se não neles (números e netos)?
Há pior que as contas, bem sei, mas agora estava a só a ser prosaicamente caseira.
(Se não estivesse, evocaria antes a simultaneidade dos sinais de perigo que se acendem na agreste paisagem social e politica que vai da “Europa” deste extremo ocidente à “Europa” de pátrias cansadas, encalhadas, zangadas. Capturadas pelos populismos, o declínio, o desmembramento, o desnorte… E já semi-soltas da tapeçaria de cujo desenho fazem parte e cujo destino lhes deveria ser comum. Um calafrio.)
Mas hoje trata-se “disto” e daqui. De dar nota do meu pasmo face à manipulação que vem da governação que nos coube em sorte e não em voto, e nos vende gato por lebre: nas enganadoras conclusões económico- financeiras que tira das más decisões politicas que toma, nas prioridades que elege, nas escolhas que faz, nos valores civilizacionais que vai assassinando criteriosamente. E de uma certa forma de fraude que é para a esquerda radical essa coisa que devia ser tão comum como a água nas torneiras que é a liberdade. Mas ela não corre nem escorre como essa água, os canos da esquerda estão muitas vezes convenientemente entupidos.
Sim, repito, nada disto pode acabar bem, já se percebeu, mas não será a curto prazo. A grande redistribuição em curso precisa de tempo e ainda estamos na época dela, como nas épocas das cerejas ou das castanhas. Agora ainda estamos na saison dos “r”: redistribuir muito e a eito, por um lado; e reverter tudo o que outros fizeram, por outro. De bom ou de mau, tanto faz. Não só é preciso acabar com a (boa) herança deixada pela coligação PSD/CDS como sobretudo corromper o prestigio dessa memória. Um dois em um: desfazer o património, apagar a sua memória. Está em curso. Convinha talvez que não se olhasse para essa delapidação com um olhar tão plácido. Tão quieto.
3. Estava em Londres, foi há dias, pude observar a cena in loco e ao vivo: Boris Johnson, físico farto e cabeleira desgrenhada, saindo de um café numa rua londrina, tendo na mão um aparatoso gelado para o qual não tinha nem a idade nem o apetite mas campanha eleitoral (a favor da saída da Grã-Bretanha da UE) oblige. O ex-mayor de Londres parecia muito feliz, o olhar espevitado de quem não duvida de si nem do desfecho desejado. Horas depois, David Cameron numa outra rua, exibia passada muito mais lesta mas tinha o olhar tenso da incerteza. Temor? Ameaça? E no entanto… eu quase que apostaria mas não me perguntem porquê porque não é racional, que Cameron, embora em baixa – ele e o seu partido – terá mais razões de felicidade que Boris Johnson. Felicidade relativa, está bem de ver, dado o estado das coisas na Europa e no mundo. Mas se o “sim “ vencer, David Cameron salva a pele politica e as supostas convicções. Não evoco sondagens, nem estudos de opinião, nem editoriais, de resto as melhores mentes e assinaturas estão tanto no campo do “sim” quanto no campo do “não” no próximo referendo quanto a manutenção britânica na UE. Evoco antes, como dizer? Uma impressão, uma intuição, um ar do tempo que não me pareceu configurar o devastador tremor de terra anunciado.
Tal percepção – admito que errada mas foi a minha durante os dias de Londres – consolou-me aliás da pena de não ter estado estado em Lisboa no domingo, para sair à rua não com um gelados como Boris Johnson, mas para vitoriar o Benfica-campeão.
Mas como Deus raramente dorme nestas coisas do futebol (veja-se o pouco que dormiu na saborosa vitória do Braga sobre o Porto, ontem, na Taça), pude ver o último jogo do meu clube ao lado de um dos meus filhos que não só é único que é do Benfica como vive em Londres e… tinha em casa uma televisão acesa, sintonizada com essa tarde de glória.
Ah (pequeno e inocente desabafo), mas que difícil é explicar, transmitir, comunicar, declinar, o arrepio de júbilo, o imaculado sentido de festa que pode provocar o futebol… Paciência, mas estas vitórias ja ninguém mas tira. E tomara aos falsos siameses, Chefe de Estado e chefe do governo, serem capazes de me dar uma migalha parecida que fosse com vitórias tão suadas, produtivas e bem conquistadas como as do Benfica.
Tomara, sim.