Chega. Há uma altura em que deixa de haver paciência para a duplicidade e a manha. Pior: há um momento em que a gravidade das consequências dessa duplicidade e dessa manha não podem deixar de ser encaradas de frente.
Escrevo sobre o que se está a passar na Caixa Geral de Depósitos. Não tenho nenhuma dúvida que a contratação de uma nova equipa de gestão exigia que esta não ficasse limitada pelas regras – com o seu quê de populistas – do estatuto do gestor público no que se refere à sua remuneração. Deviam apenas estar limitadas pelas regras do mercado (quanto temos de pagar para ter os gestores que queremos contratar?) e pelas regras do bom senso (qual o limite para esses valores serem considerados razoáveis, nomeadamente face ao que esses gestores ganhavam antes?).
Mas se digo isto sobre as remunerações, não digo o mesmo sobre as regras de transparência. A Caixa Geral de Depósitos não é banco como os outros – se fosse, o melhor era privatizá-la. Sendo pública, os seus gestores não podem beneficiar de um secretismo que não é permitido a um presidente de uma minúscula junta de freguesia ou ao gestor de uma pequena empresa participada. Em suma: têm de entregar as suas declarações no Tribunal Constitucional, onde elas estarão disponíveis como estão a de todos os restantes. Isto é, sujeitas a escrutínio público, e não tenhamos dúvida que ele acontecerá no exacto momento em que tais declarações aterrarem (se aterrarem) no Palácio Ratton. Não é voyeurismo, é política e é liberdade de imprensa. Não é defeito português, aconteceria o mesmo em que qualquer democracia em que a mesma regra existisse. Provavelmente até poderiam ser consultadas online.
É desagradável para gestores que toda a vida estiveram protegidos deste nível de exposição pública? É. Mas isso não chega para que se queira mudar regras do jogo que são as mesmas há mais de 30 anos. Ou para se permitir que alguém a quem se vai entregar cinco mil milhões de euros para gerir o faça deixando no ar a sensação de que tem algo a esconder, algo de menos próprio ou conveniente para se estar à frente do banco do Estado. Que acções possuem de outros bancos, nomeadamente do BPI? Que contas detêm? E são todas em Portugal? Eis temas sensíveis que nada têm a ver com saber de que casas, carros ou iates são proprietários.
O impasse em que estamos não é culpa nem de António Domingues, nem da equipa que ele escolheu: é responsabilidade de quem aceitou as suas condições sabendo que, para as aceitar, teria de mudar a lei e as regras do jogo. E quem as aceitou tem nome: Mário Centeno (eventualmente logo em Março, como se noticiava esta segunda-feira) e António Costa (pelo menos desde Junho, de acordo com uma notícia deste sábado).
Centeno e Costa – este último, ao que parece, saindo de propósito de uma reunião de Conselho de Ministros – disseram ao presidente da CGD que poderia manter secreto o seu património, tal como os membros da sua equipa. Quando fizeram a lei, fizeram-na deliberadamente com essa intenção. Recordemos que, quando o problema foi levantado, o ministro das Finanças foi célere a declarar que não havia problema nenhum – “o acionista Estado tem conhecimento perfeito da matéria que está em cima da mesa, o supervisor também”, como se isso resolvesse alguma coisa ou tornasse inútil a lei de 1983 ou os princípios de transparência na vida pública – e que uma fonte do seu Ministério foi ainda mais longe ao declarar, taxativamente, que a omissão do escrutínio público na lei feita especialmente para os gestores da Caixa não era um lapso.
A partir deste momento a posição do Governo e do PS passou a ser ora dúplice, ora sonsa, ora abertamente hipócrita. Primeiro foi Carlos César a dizer que os gestores tinham de entregar mesmo as declarações, a seguir a empurrar o problema para o Tribunal Constitucional, depois a concordar com Marcelo Rebelo de Sousa, ou seja a concordar que não só as declarações devem ser entregues, como que a Assembleia pode clarificar a lei se assim o entender. Depois foi Costa a esgueirar-se como podia, ora empurrando para o Constitucional (em nome da “separação de poderes”, como se não tivesse sido ele a propor a alteração legal que está na base da controvérsia), ora recusando-se a responder a qualquer pergunta, no Parlamento ou de jornalistas. Finalmente esta segunda-feira ouvimos Pedro Nuno Santos declarar que os gestores da Caixa “têm de apresentar a declaração de rendimentos” porque é isso que diz a lei de 1983, tirando formalmente o tapete a Mário Centeno, para quem remete, cinicamente, os “detalhes” do que foi combinado com a equipa de António Domingues.
Isto não é apenas uma trapalhada – isto é um modus operandi típico de quem fez uma combinação que não devia ter feito, de quem aprovou uma lei que não devia ter aprovado, de quem procura atirar a responsabilidade (primeiro) e as culpas (depois) para cima de outros e, sobretudo, de quem não quer definir-se e só procura um bode expiatório. A comandar este exercício de suprema hipocrisia política está naturalmente o primeiro-ministro, por certo convencido que a arte de bem se esgueirar como uma enguia é a suprema arte do bom político.
Tudo pode acabar mal, e o supremo cinismo é nem sequer assumir com frontalidade que se prometeu o que não se podia ter prometido. Mas se acabar mal, e se esta administração da Caixa cair, o terreno está desbravado para serem eles os maus da fita, os que não quiseram cumprir a lei, os que se julgam acima do comum dos mortais. Nessa altura António Domingues terá toda a razão para se sentir enganado, mas sobretudo perceberá que pouco proveito terá em ter colocado as suas condições em devido tempo e ter moralmente razão. Perceberá como vale pouco a palavra dada em política – em especial a palavra de certos políticos – e que engolir sapos faz parte do menu de quem vai para uma Caixa Geral de Depósitos.
Por fim não deixa de ser irónico que o Governo tenha querido gerir a Caixa com o mesmo tipo de regras de um banco privado – e com o mesmo tipo de agressividade na sua reestruturação, como a seu tempo se verá, se bem que com tudo bem almofadado pelo dinheiro dos contribuintes – e encha a boca com as enormes “vantagens” de ter um banco público. Como agora se está a ver, não se pode ter sol da eira e chuva no nabal ao mesmo tempo.
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