Um milhão de pessoas só em São Paulo. Talvez dois milhões no conjunto das grandes cidades brasileiras. Desde a campanha pelas “directas”, que marcou o fim da ditadura militar, que o Brasil não vivia uma jornada assim.

E, contudo, Dilma tomou posse há apenas três meses. Não, nem chega: a posse foi a 1 de Janeiro, são dois meses e meio. Nunca se tinha visto. Sem bandeiras de partidos, muitos vestidos com as cores da bandeira brasileira, os “homens direitos”, como lhes chamou um colunista da Veja, saíram à rua. Veio gente de todas as classes, de todas as idades, de todas as mestiçagens possíveis no Brasil. Vieram para exigir o fim da corrupção e a demissão de Dilma Roussef.

Não é preciso fazer raciocínios complicados para perceber o que se passou e está a passar. Primeiro, No Brasil de hoje os escândalos de corrupção entrelaçam-se uns nos outros, envolvem cada vez mais políticos e cercam o PT, o lendário e impoluto PT. O partido de Lula é o hoje o partido do “mensalão” e do “petrolão”. Há gente de outros partidos envolvida, mas é sempre o PT que está no centro das investigações. E que tem o seu tesoureiro acusado. E o pior é que a própria Dilma esteve muitos anos na Petrobrás.

Depois, Dilma mentiu para vencer as eleições. Mentiu sabendo que estava a mentir, pois prometeu o que sabia que não podia cumprir. A economia brasileira está à beira da recessão, a inflação é de novo uma ameaça e a queda dos preços do petróleo secou o mealheiro do Governo. Dilma sabia tão bem que a economia estava mal que uma das suas primeiras escolhas depois de reeleita foi ir buscar um ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que em qualquer outro lugar do mundo seria atacado como um “perigoso neoliberal” – até porque o é de facto, se seguirmos a cartilha da moda e olharmos para o seu currículo no FMI e no sector financeiro. Com ele não vêm as promessas de campanha, vêm aqueles cortes orçamentais a que costumamos chamar “austeridade”.

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Este cocktail de corrupção e logro é explosivo. Respira-se no ar das ruas de qualquer cidade brasileira. Talvez Dilma se aguente, talvez não haja impeachment como houve com Collor de Melo, talvez o PT resista – mas o que não sobrou foi qualquer ilusão. Chegados ao poder, os “puros” foram tão impuros como os outros. E quando o dinheiro se acabou, os milagreiros foram a correr pedir ajuda aos piores inimigos, os neoliberais. Já não há heróis.

A desilusão brasileira é, contudo, apenas a mais recente desilusão das esquerdas eternamente românticas. Aqui pela Europa, nos últimos anos, a sua primeira grande desilusão chamou-se François Hollande. Mal chegou ao Eliseu e se confrontou com a realidade, o socialista esqueceu-se de todas as promessas eleitorais e começou a tratar de fazer – mas enfrentando enormes resistências –, as reformas que tinha prometido combater. O homem que ia fazer frente a Merkel sucumbiu logo nos primeiros embates e a desordem criada na paisagem política francesa é hoje tal que o impensável – uma vitória da Frente Nacional – até já aconteceu, se bem que ainda só numas eleições europeias.

Mas Hollande, dirão os nossos românticos, não era senão “um frouxo”, um típico produto dos partidos socialistas e sociais-democratas que são cúmplices do “neoliberalismo” e demasiado acomodados para transportarem qualquer ousadia de esperança. Havia que encontrar um novo messias, e ele logo surgiu sob a forma de um jovem deus grego, Alexis Tzipras, e do seu Syriza. A sua vitória, garantiam-nos, ir mudar a Europa e “acabar com a austeridade”.

50 dias depois o balanço é quase trágico. A pouca confiança que havia entre a Grécia e os seus credores desapareceu por completo. Por troca com algumas variações semânticas, o governo do Syriza já começou a comprometer-se na Europa com medidas que nem teve coragem de colocar à discussão e votação no Parlamento onde tem a maioria. Agora já se fala abertamente de “suspender ou atrasar a implementação das promessas [eleitorais]”, e todos sabemos como isso pode ser apenas um eufemismo face ao que vai mesmo acontecer. Pior: em poucas semanas o mal feito à economia grega é já enorme, pelo que a recuperação iniciada em 2014 deve estar comprometida. Isto se tudo não acabar de forma ainda mais dolorosa no curto prazo, com uma saída caótica do euro.

A cereja em cima deste bolo de confusões e feiras de vaidades foi a sessão fotográfica do Paris Match em casa de um cada vez mais narcísico Varoufakis. A França já conhecia a sua “gauche caviar”, nós tínhamos a nossa “esquerda Lux”, chegou a vez de os gregos conheceram a variedade “esquerda branco de Santorini”, ou “cachecol Burberry”, dos seus líderes radicais. E o pior é que tudo isto não é encenação ou bluff, é mesmo para levar a sério. O que faz com que a desilusão, na sua variante grega, tenha mais a forma do susto – susto de que nos arrastem para o abismo. Mas não deixa por isso de ser desilusão.

Sobrava, mesmo assim, o Podemos, a encarnação por excelência do “movimento de cidadãos”, nascido das “bases”, erguido a partir dos “indignados” sem partido e sem interesses. É certo que boa parte da popularidade do líder, Pabro Iglésias, lhe vinha se ser um dos “marcelos” das televisões espanholas, mas isso era um detalhe. Afinal ele, com o seu rabo-de-cavalo e a roupa comprada na modesta Zara, era o mais próximo que se arranjava da figura mítica do “descamisado”, e o seu movimento parecia ter a espontaneidade dos que se indignavam genuinamente com “la casta”, a elite dirigente espanhola.

Até que se soube das ligações venezuelanas. Do dinheiro que o número três do Podemos, Juan Carlos Monedero, tinha trazido de Caracas e escondido do fisco. E de como o regime chavista alimentou anos a fio uma ONG de que o próprio Iglésias fora também dirigente.

Num país em estado de choque com o nunca mais acabar de casos de corrupção que minaram a credibilidade dos seus grandes partidos – o PP, o PSOE, também a CiU da Catalunha – o golpe está a revelar-se duro e a abrir caminho a um outro movimento, Ciudadanos, mais moderado e mais centrista. A luz de Pablo Iglésias começa a esmorecer, o estatuto de “pureza virginal” do Podemos, essa força política sem “pecado original”, começa a desaparecer. Pelo que o Podemos pode ser a desilusão que nem chegou a ser uma verdadeira ilusão.

Sendo todas estas histórias muito diferentes, e representando estas forças políticas tradições muito distintas na história da esquerda (da antiga e da moderna), a verdade é que há um fio que as une. E esse fio é o do radical divórcio entre o desejo de manter vivas as utopias que faziam sonhar as esquerdas do século XX – e que fizeram com que muitas delas, as mais radicais, se revelassem não apenas uma enorme ilusão, como uma tragédia para os povos que as conheceram no poder –, e o mundo do século XXI.

Os sonhadores (ou os oportunistas) que se julgavam sempre do lado da História e se imaginaram sempre como detentores de uma inquestionável superioridade moral, vêm-se agora em contrapé. E o drama (a desorientação?) atinge também a esquerda moderada.

É que se houve uma esquerda que ajudou a salvar o capitalismo dos seus excessos muito contribuindo para os nossos Estados Providência, aquilo de que hoje mais precisamos é de quem nos ajude a salvar esse mesmo Estado Providência dos excessos de uma esquerda que ainda não parece ter percebido que 2015 não é 1965 e ainda menos 1917.

Se não o entender, se continuar a vender ilusões e a fazer promessas (ou apenas a tentar não se comprometer), a esquerda romântica, tal como a esquerda que quer governar, não sofrerá apenas desilusão atrás de desilusão – pode também, pelo efeito da negação das expectativas criadas, reavivar as brasas dos extremismos que nunca verdadeiramente se extinguiram nos subterrâneos das nossas sociedades. Em parte já estamos a ver isso suceder.