É razoavelmente consensual que o turismo tem sido uma das alavancas da nossa recuperação económica. É portanto normal que a lei se ajuste a esta nova realidade, nomeadamente com a criação da figura do Alojamento Local e, havendo tanta gente que beneficia do turismo precisamente por essa via, é também normal que projectos de lei que de alguma forma o modifiquem gerem controvérsia. A última foi gerada por um projecto-lei do Partido Socialista que basicamente propõe que para que alguém possa arrendar o seu apartamento a turistas tenha de obter o assentimento do condomínio. Ao se exigir tal requisito, passa-se a exigir o mesmo que a alguém que queira abrir um estabelecimento de índole comercial, como uma loja, por exemplo, e que não se exige no arrendamento tradicional.
Segunda-feira, foram publicados dois bons artigos sobre o assunto, embora de sinal contrário. Fernanda Câncio, no Diário de Notícias, resume bem o que está em causa: o fulcro da discussão é saber se o Alojamento Local “é uso habitacional ou não, e em que medida se distingue, juridicamente, de arrendamento permanente.” A resposta não é trivial: tal como não basta a um apartamento ter estudantes para ser uma residência universitária, também não basta ter turistas para ser um hotel. Percebe-se que concorda com a proposta do Partido Socialista quando escreve que “os efeitos do [arrendamento permanente] na comodidade e tranquilidade dos moradores não são iguais ao do arrendamento temporário a turistas” e que, “sendo assim, é capaz de fazer sentido que a lei os trate de forma diferente”. Eu compreendo o incómodo. Pelo que vou lendo, as queixas a respeito dos turistas são em tudo iguais às que eu conheço relativas a prédios com apartamentos cheios de estudantes, como o prédio onde a minha mãe vive em Coimbra.
Vera Gouveia Barros, no Jornal Económico, depois de deixar claro que não vê assim tantos efeitos negativos de ter turistas a entrar e sair no prédio, foca-se nas consequências económicas das alterações das relações de poder e argumenta que a lei vai favorecer quem tem capacidade para comprar vários apartamentos e prejudicar o pequeno senhorio que apenas tem um apartamento para arrendar.
Concordo, em parte, com ambas. Considero, de facto, que ter turistas no prédio traz incómodos específicos, como pessoas a entrar e a sair fora de horas, barulhos, lixo posto no caixote fora de horas, etc. E o facto de serem habitantes de apenas uns dias ajuda a que as regras sociais de boa vizinhança sejam mais difíceis de serem respeitadas.
Por outro lado, Vera Gouveia Barros tem razão quando alerta para as consequências económicas de aprovar este projecto de lei. Por um lado, não se percebe o que acontece a quem já arrenda a sua casa a turistas. Se vier a ser afectada pela lei, então houve quem investisse no pressuposto de que poderia dar um dado uso à casa e agora vê essa expectativa revertida e pode ficar com o seu investimento a arder. Caso a lei não se lhe aplique, então teremos estes proprietários em assembleia de condóminos a vetar que outros dêem uso semelhante aos seus apartamentos, o que é moralmente absurdo, mas, como se sabe, aniquilar a potencial concorrência é a melhor forma de proteger os seus lucros. Ou seja, os apartamentos que actualmente já são arrendados a turistas passarão a valer mais no mercado, enquanto os outros ficarão desvalorizados.
Adicionalmente, se uma decisão destas passa para a assembleia de condóminos, toda uma série de resultados perversos pode acontecer. Por exemplo, autorizar alguns proprietários e outros não, abrindo a porta a todo o tipo de vinganças mesquinhas. Mesmo quem não tenha objecções a que alguns apartamentos sejam arrendados, poderá aproveitar o seu poder negocial extra para vender o voto, abrindo-se assim a porta a subornos entre vizinhos.
Independentemente de me parecer óbvio que quem fez esta proposta de lei não pensou a fundo nas suas consequências, há duas questões que me chocam particularmente. Em primeiro lugar, como, a partir de um problema que afecta uma pequeníssima minoria de pessoas, se escreve uma lei que atinge todo o território. Em segundo, num sector que foi decisivo para sairmos da crise, descer o desemprego, aumentar as exportações e fundamental para a regeneração de vários centros históricos em decadência, se propõe uma lei com um potencial impacto tão forte e com tão pouca fundamentação.
Em relação ao meu primeiro choque, basta ver este mapa, produzido por Carlos Guimarães Pinto, no Insurgente. “Toda a zona a vermelho está ser invadida por turistas, empurrando os portugueses para o gueto a cinzento.” Ironias à parte, este problema, se é que é um problema, afecta uma pequeníssima parte do território. Seria bom que os deputados se convencessem que problemas locais, mesmo que da capital, não são problemas nacionais e que não faz sentido mudar leis que afectam todo o território nacional por causa dos problemas de uma pequena franja da sua população.
Ainda por cima, não é de todo óbvio que seja um problema. E aqui entramos no meu segundo choque. Os autores do projecto-lei não apresentam um único estudo para fundamentar as suas propostas. Não há um inquérito sequer que nos diga que, de facto, os habitantes das zonas históricas estão a sofrer assim tanto com os turistas. Eu encontrei um que, não sendo o ideal, nos dá uma ideia do que pensam os lisboetas. Trata-se de um inquérito que a Associação de Turismo de Lisboa encomendou à Intercampus. De acordo com os resultados, os lisboetas (quer residentes quer os que apenas lá trabalham) estão muito satisfeitos com o aumento do turismo. Cerca de 90% gostam. Mesmo entre residentes, 64% diz que gosta da cidade cheia de turistas. E quantos se queixam do barulho, a principal fundamentação da proposta de lei? 4%. Ou seja, este barulho todo é por causa de 4% dos residentes de Lisboa. Quem achar que o estudo não é válido ou que é enviesado por ter sido encomendado por uma associação de turismo tem um bom remédio: apresentar outro. Até lá, os dados que existem são estes.
A falta de sustentação do projecto-lei não se fica pela total ausência de fundamentação da sua principal motivação. Ao longo de um longo preâmbulo de três páginas, nenhuns dados relevantes são apresentados. Os autores limitam-se, logo no primeiro parágrafo, a citar “as Estatísticas do Turismo – 2015, publicadas em 28 de julho de 2016”. Mas, indo ver essas estatísticas, descobrimos que as mesmas se referem apenas a “unidades com mais de 10 camas”. O que, de acordo com um estudo feito por Hélia Gonçalves Pereira, professora de Marketing no ISCTE/IUL, representa menos de 5% da oferta de alojamento na área metropolitana de Lisboa. Ou seja, as estatísticas citadas no projecto de lei praticamente não incluem apartamentos em condomínios, que são o objecto deste projecto. Na verdade, quase que parece que um paspalho tem mais cuidado a fundamentar um artigo de opinião do que dois deputados a fundamentar um projecto de lei que vai afectar um dos sectores mais dinâmicos de Portugal.
No fim, convenhamos, leis nacionais não podem servir para resolver problemas locais e satisfazer pequeníssimas minorias. Se o problema é tão grave como alguma opinião publicada o descreve, entreguem às Juntas de Freguesia a competência para a definição deste tipo de regras. Desta forma, podem regular à vontade sem afectar o resto do país.