Acerca da anulação da conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e dos motivos dessa anulação, muita gente, da esquerda à direita, se pronunciou com as palavras certas. Há, no entanto, uns silêncios que convém interrogar. Que eu tenha reparado, ninguém do PC ou do Bloco de Esquerda julgou útil desta vez fazer ouvir a sua voz, o que em princípio devia espantar, tratando-se de gente particularmente vocal que aprecia sumamente dissertar sobre toda a espécie de direitos e que tem ideias bem definidas sobre a liberdade, ou sobre as “amplas liberdades”, como dantes o PC dizia.

Mas deixemos o PC de lado. Provavelmente, as cabeças andam por aqueles lados entusiasmadas com a próxima comemoração dos prodigiosos feitos do camarada Ulianov num longínquo Outubro e isso toma-lhes o tempo todo. Quanto ao Bloco, esta hipótese não parece assim tão verosímil e o silêncio requer alguma explicação. Porque é que não se ouviu nesta matéria uma só palavra de Catarina Martins, de Mariana Mortágua ou de Francisco Louçã?

Não custa muito encontrar uma explicação simples: porque concordam com a anulação da conferência. Demasiado simples? Francamente, não creio. A especialização nas chamadas “causas fracturantes”, que tornou o Bloco conhecido do bom povo português, tende a fazer esquecer algumas características ideológicas que identificam no essencial aquela tão moderna agremiação. É que, sob as vestes da modernidade, o que conta verdadeiramente são ainda as arcaicas concepções totalitárias que se encontram na sua origem. É isso que fornece uma unidade subjacente à multiplicidade das “causas”. Que isso permaneça imperceptível a uma grande parte das pessoas deve-se em grande parte a um efectivo talento para o marketing político que descobriu um muito conveniente nicho ecológico nos media. A maneira como esta ocultação da presença da origem no presente foi levada a cabo com sucesso é provavelmente um dos factos mais reveladores da facilidade do triunfo da impostura em política, uma impostura desde há um ano devidamente recompensada, para nossa grande desgraça, com a generosidade de António Costa.

E qual é essa origem ainda viva no presente que o talento publicitário do Bloco, em conjunto com a passavelmente ignorante e inconsciente receptividade mediática, conseguiu eficazmente camuflar? Obviamente, o leninismo. Se há algo que garante eficazmente uma unidade de pensamento e de acção, por detrás do universo das “causas”, que oscila entre o aceitável e o ridículo, tudo misturado numa retórica cheia de urgência, é mesmo o leninismo. O leninismo como método de confronto político assente na presunção da perfeita ilegitimidade do adversário e na concomitante legitimidade da sua vilificação. O leninismo como apologia da intolerância e da violência quase esteticamente vistas como virtudes políticas por excelência. O leninismo como teorização do oportunismo e desprezo último pelas formalidades democráticas. O PC comemora Lenine como santo da seita. O Bloco é diferente: não precisa de dele falar, precisa de o usar.

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Dir-se-á que tal origem é dificilmente discernível nos semblantes mais conhecidos do Bloco. Afinal de contas, Louçã, ao contrário do memorável Arnaldo Matos, não anda sempre com a boca cheia da “ditadura do proletariado” e ninguém está a ver Catarina a criar um Gulag na Serra da Estrela. Eu também não. Até porque não é preciso. A flexibilidade do leninismo, o seu oportunismo elevado a condição transcendental da política, permite um sem número de variações, e esta nossa particular versão caseira dispensa facas na boca e sangue a escorrer pelos cantos. Basta-lhe algo mais modesto: o exercício da política fundado no desprezo pelo adversário e a convicção de que o uso da manipulação é finalmente pagante na conquista do poder. E não se pode dizer, desde há um ano, que essa convicção seja totalmente infundada.

Mas, mesmo que não se deva confundir coisas diferentes, há demasiadas semelhanças entre o Bloco e o Podemos de aqui ao lado, para não sermos cegos ao facto de o primeiro conter em si a possibilidade de se tornar algo como o segundo. E no Podemos o leninismo não só é praticado como teorizado. O culto da figura do bolchevique puro e duro, que não olha a meios para atingir os fins, é feito às claras e com volúpia doutrinal. É ler, entre outros, Pablo Iglesias. E os processos de intimidação são o pão nosso de cada dia, ao ponto de os próprios jornalistas espanhóis se queixarem, através da Associação da Imprensa de Madrid, das ameaças, cada vez mais palpáveis, que lhes são feitas. Mas falar disso é tabu. É tão mais fácil e tão mais seguro o gozo condenatório com as eminentemente dispensáveis querelas de Trump com jornais e televisões, que, de resto, estão condenadas a atenuarem-se.

É bom percebermos que estamos a lidar com gente para a qual não há, em domínio algum, qualquer espécie de neutralidade, inclusive académica. O silêncio em relação ao caso de Jaime Nogueira Pinto exibe-o perfeitamente e de forma inadulterada. O outro de que se discorda não é susceptível de merecer a distância que nos permita ouvi-lo. Insultá-lo, identificá-lo como inimigo, é mais fácil. No caso de Nogueira Pinto, é “fascista”. Noutros tempos, é bom lembrá-lo, bastava ser “socialista”. Desde que António Costa, com a sua proverbial fortitude, derrubou pela segunda vez o Muro de Berlim, os socialistas, tirando um excêntrico ou dois, podem estar tranquilos: “socialista” não é um nome feio. Mas nada garante que seja sempre assim. A não ser que certa gente do partido que Costa trouxe para junto de si tomar definitivamente conta do PS. Nesse caso, a paz poderá tornar-se definitiva. Com o PS a mudar até de nome: PSE – Partido Socialista de Esquerda. Lenine explica.

O que Lenine não explica é que, de caminho, se abre também a possibilidade da criação de uma extrema-direita a sério em Portugal, que era o que faltava para compor o lindo ramalhete da nossa política. Mais um motivo para estarmos muito gratos a António Costa.