Parece, mas não é. Parece que se quer disciplinar financeiramente a ADSE, e não se duvida que seja esse o objectivo, mas o resultado que se poderá obter é degradar o ainda invejável serviço de saúde que os funcionários públicos têm. No limite, se a falta de visão reformista se mantiver, o sistema da função pública corre o risco de acabar e, por via disso, agravar-se a assistência na doença da maioria dos portugueses. Quem tiver dinheiro está sempre salvo.
Hoje já há médicos de especialidades que se recusam a trabalhar para a ADSE. Com as novas tabelas apresentadas pelo Governo, corre-se o sério risco de aumentarem o número de médicos que preferem ficar de fora – aqueles que conseguem ter clientes capazes de pagar o preço do seu trabalho.
A iniciativa de rever as tabelas da ADSE partiu do Ministério de Adalberto Campos Fernandes, ao qual cabe, desde o Governo de Pedro Passos Coelho, a tutela conjunta com as Finanças do sistema de assistência na doença dos funcionários públicos e aposentados. Os novos preços deveriam ter entrado em vigor em Janeiro, mas a guerra que o Ministério da Saúde abriu com os mais importantes prestadores de saúde tem feito derrapar os prazos. E o debate, lamentavelmente, cai para o costume: a batalha público versus privado. Quando se devia concentrar na prestação dos serviços de saúde.
O que está em causa é um corte de 30 milhões de euros na facturação da ordem dos 460 milhões de euros das entidades com acordos com a ADSE, ou seja, cerca de 6% (números da ADSE porque os privados falam em cortes de 10%). Os mais afectados são os grande grupos. Luz Saúde, grupo Mello, Lusíadas e Trofa concentram pouco mais de metade da facturação à ADSE.
A guerra está tão feia que já se atiram granadas mutuamente. O Ministério da Saúde, como forma de pressão para os privados aceitarem a nova tabela, aplicou normas de um regulamento de 2014 – que não estava activo – em que, basicamente, a ADSE aplica descontos (paga menos) nos valores de regularização de facturas mais antigas. Como reacção, os privados, representados pela sua associação, interpuseram uma providência cautelar. E há grupos privados a ameaçarem que, se as novas tabelas entrarem em vigor como estão, vão encerrar unidades de saúde. Quais? Numa lógica de rentabilidade serão, com toda a certeza, as que estão fora dos grandes centros urbanos, mais dependentes de utentes que sejam ou estejam aposentados da função pública e sem poder de compra para comprarem um seguro.
Claro que é preciso fazer alguma coisa para impedir o fim da ADSE. É preciso actuar na despesa e na receita, mantendo tanto quanto possível os direitos que existem hoje. Aumentar a comparticipação dos utentes não aparece em alguns casos um drama se considerarmos, por exemplo, que os subscritores da ADSE pagam 3,90 euros por uma consulta de cardiologia.
Do lado da receita, o aumento da contribuição de 2,5% para 3,5% garantiu um excedente significativo em 2014 ( cerca de 200 milhões de euros) que tem estado em queda, prevendo a ADSE que se registe um prejuízo da ordem dos 12 milhões este ano.
O maior erro foi cometido em 2010, quando se tornou a adesão à ADSE facultativa, ao mesmo tempo que os contratos individuais de trabalho na administração pública reduziam também os subscritores. Resultado: o número de subscritores tem vindo a diminuir e a estrutura etária é cada vez mais envelhecida, o que significa mais custos e menos receitas.
Os custos são ainda reforçados por tabelas de preços desajustadas, que convidam à subsidiação cruzada. O que lemos da autoria do ex-secretário de Estado da Saúde Fernando Leal da Costa é que um doente hospitalizado sai mais caro quando usa os serviços privados por via da ADSE do que se for atendido pelo Serviço Nacional de Saúde. Mas, em contrapartida, os médicos e outros actos médicos saem mais baratos. Aparentemente o que os privados fazem é compensar com preços mais elevados aquilo que a ADSE lhes paga abaixo do custo.
Nem que seja apenas por isso, as tabelas da ADSE têm de ser revistas. Mas o bom senso recomendava que se aproveitasse esta oportunidade para dar ao sistema uma lógica ajustada aos novos tempos e preços. Uma das propostas que os privados fizeram foi actualizar a tabela dos actos médicos em linha com o que está a ser feito pela Ordem dos Médicos.
No meio desta guerra aparece ainda a possibilidade de a ADSE ter os seus próprios serviços de saúde, construindo um hospital ou entrando no capital de algum já existente. Seria mais um prego no caixão que se anda a construir para acabar com o sistema de saúde dos funcionários públicos e aposentados do Estado. Vale-nos o bom senso do Conselho de Supervisão, onde estão representados sindicatos e utentes, que se opôs a tal ideia. Parece óbvio, menos para quem dirige a ADSE, que o que precisamos é de mais pessoas a trabalhar na Saúde, mais organização e mais informação e tratamento de dados para se poupar e, ao mesmo tempo, prestar um bom serviço.
Desiludam-se também os que consideram que o fim da ADSE podia ser uma boa notícia para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e aqueles que consideram que o privado vive à custa do dinheiro público. Claro que o fim da ADSE iria reduzir a dimensão do sector privado na Saúde. Mas os funcionários públicos teriam um pior serviço e, em média, todos ficaríamos pior. Basta ver o estado de congestionamento, com listas de espera para dizer o mínimo, em que está hoje o SNS e pensar em como estaria se recebesse mais um milhão de pessoas (são 1,2 milhões os subscritores).
A forma como o Ministério da Saúde está a abordar neste momento o problema da ADSE é mais destrutiva do que construtiva. Tem como objectivo salvar o sistema, mas pode acabar por condená-lo à morte. E com isso degradar os serviços de saúde para a maioria dos portugueses enquanto aumenta a subscrição de seguros por parte de quem tem mais rendimentos. E, em suma, agravar ainda mais a desigualdade no acesso aos cuidados de saúde.