A inflação salvou as nossas contas públicas, colocando-nos num regime orçamental em que o debate deixa de ser como corrigir o défice, para passar a ser o que fazer em tempos de excedente orçamental. A ironia é ser o PS a resolver o problema crónico das contas públicas, quando festejamos os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e com um Orçamento que podia perfeitamente ser subscrito por quem defende políticas orçamentais mais liberais. António Costa optou definitivamente por usar a despesa para a política social, utilizando menos os impostos para a redistribuição do rendimento ao reforçar a tributação indirecta. O que cria ainda mais dificuldades ao PSD.

A grande vantagem de termos de nos preocupar menos com o “monstro”, como lhe chamou Aníbal Cavaco Silva, é podermos olhar agora para o papel que a política orçamental pode e deve ter não apenas na redistribuição do rendimento – tema que merece muita atenção do Governo –, mas também na equidade em termos gerais e no papel do Estado na prestação de serviços.

Na equidade, o Governo desvalorizou o efeito da sua decisão de aumentar o Imposto Único de Circulação para os automóveis anteriores a Julho de 2007. Sendo verdade que o Governo está a fazer a redistribuição com os apoios sociais – através da despesa –, a decisão que tomou de agravar o IUC para os automóveis anteriores a 2007 olhou para equidade de quem tem automóveis posteriores a essa data, mas esqueceu-se quer da razão dos descontos para esses carros com mais de 16 anos, quer do facto de estes pertencerem, com elevada probabilidade, a pessoas para quem menos 25 euros – o aumento previsto para 2024 – faz muita diferença. Esses carros pagavam menos IUC porque pagaram, na altura da aquisição, Imposto Automóvel.

Não se pode justificar este aumento com a necessidade de adoptar medidas para combater as alterações climáticas. A transição tem de ser justa – existem até recursos europeus para o fazer – quer por razões de pura equidade, quer porque a transformação que é preciso fazer é tal que só se concretizará com o envolvimento da comunidade. Foi um erro, e esperemos que não corresponda à realidade, aquilo que tem vindo a afirmar-se como sendo uma das razões para esse aumento: encontrar recursos para compensar a perda de receita da descida de algumas portagens rodoviárias. A política ambiental parece estar a ser desenhada sem qualquer critério. Não se pode aumentar o IUC para combater as emissões de CO2 e depois oferecer descontos nas portagens, incentivando a circulação automóvel.

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O outro tema que marcou este debate orçamental foi a Saúde, que promete continuar. Por muitos números que se atirem, há um mistério muito difícil de desvendar: hoje temos um SNS que gasta mais 72% do que em 2015 e funciona pior. Usando os números do Ministério das Finanças, o Orçamento do SNS passou de 7,8 mil milhões de euros para 13,5 mil milhões, que vai ser em 2024. Não estamos perante um problema de falta de dinheiro. “Quem me  dera”, disse o ministro das Finanças, que o problema do SNS fosse financeiro. O problema tem de ser ou falta de recursos humanos ou de gestão, ou os dois.

Os serviços públicos de saúde estão sob pressão um pouco por toda a Europa. Numa conferência recente, organizada na Áustria, a Organização Mundial de Saúde, pela voz do representante europeu Hans Kluge, revela que faltam um milhão e 800 mil pessoas para trabalhar na Saúde – faltam médicos e enfermeiros –, com a maior pressão a sentir-se no sul e no leste europeu, pela emigração para os países onde se paga melhor. Ou seja, Portugal é um desses países que exporta médicos e enfermeiros. E o receio, também ali afirmado, é que os países europeus estejam em risco de perder o seu serviço nacional de saúde, baseado na solidariedade, vendo-o aproximar-se daquele que é um péssimo modelo, o dos Estados Unidos, baseado no sector privado em que é não só menos eficiente – para o mesmo serviço gasta-se mais – como mais desigual – a saúde é para quem tem dinheiro.

Portugal enfrenta o problema que atravessa os países europeus, mas de forma mais grave relacionado com três factores específicos. O primeiro foi a falta de investimento – por exemplo, mais de duas décadas em que nada se fez para continuar a criar uma rede de cuidados de saúde primários para que as urgências fossem mesmo urgências. O segundo factor está relacionado com a pobreza e a falta de literacia, que faz com que sejamos um dos países onde se envelhece com mais problemas de saúde. E finalmente por erros cometidos no mandato de Marta Temido que criou problemas onde eles não existiam, quando escolheu acabar com as PPP de Braga e de Vila Franca de Xira. Não vai ser fácil resolver este problema.

Finalmente a habitação. É igualmente um problema que afecta outros países e não tem uma solução de curto prazo. Em Portugal, a pressão que faz escassear a oferta para a classe média é exercida pelas classes de rendimentos mais altos e mais baixos. De um lado estão os imigrantes ricos – alguns atraídos pelo regime fiscal de não residentes que vai acabar em 2024 – que criam o incentivo para que a oferta de casas novas ou recuperadas se oriente fundamentalmente para esse segmento. Do outro lado estão os imigrantes mais desfavorecidos que vivem em elevado número em casas arrendadas a preços elevados, com alguns senhorios a explorarem estas situações de necessidade.

O plano do Governo “Mais Habitação”, se excetuarmos os apoios financeiros, contribuiu para agravar ainda mais a situação, ao assustar os potenciais investidores imobiliários. As piores soluções são sempre aquelas em que nem se deixa funcionar o mercado nem se actua com um intervencionismo absoluto. E foi isso que se fez. Por muitas críticas que tenha recebido da sua esquerda, o Governo desta vez escolheu bem ao optar por deixar que a lei da actualização das rendas fosse aplicada e optando por focar os apoios nas famílias que de facto precisam.

Com aquele que é o nono Orçamento do Estado de António Costa, e quando se pode dar ao luxo de dizer que conseguiu domar o “monstro” das contas públicas, entramos num regime em que podemos finalmente falar menos de finanças e dar mais atenção às políticas económicas. Ter os impostos, a saúde e a habitação como temas centrais do debate orçamental é um passo nesse sentido. Sem a restrição financeira tão activa como no passado, agora há margem para modernizar o Estado, para melhorar os serviços públicos. Este é o desafio que agora o Governo tem.