Charb, Cabu, Tignous, Wolinski e os seus colegas da Charlie Hebdo nunca aceitaram limites. Eram “anarcas” de antes do politicamente correcto, que nem ao bom gosto faziam concessões. Podiam-se ter ficado pelos presidentes franceses, pela extrema-direita local ou pelo papa – alvos relativamente pachorrentos. Mas não. Tiveram de gozar o Islão e os seus jihadistas, porque, como explicou Charb, para ele, Deus não existia e Maomé não era, obviamente, o seu profeta. Acabaram, por isso, a desenhar sob protecção policial – uma suprema ironia: Maio de 68 defendido pelos gendarmes. No fim, nada lhes valeu.

O atentado, como alguns disseram, era previsível. E a nossa reacção também. Fomos Charlie, como em tempos fomos americanos. Desfraldámos, mais uma vez, os grandes estandartes da “liberdade” e da “união”. Nesta aparente unanimidade, houve algo de reconfortante, mas talvez também algo de enganador: a sensação de que, no fundo, a vitória é certa, porque a razão, a história e outras grandes abstracções lutam por nós. Os terroristas estariam de antemão derrotados e a barbárie, por mais sangrenta, seria sempre algo de fútil.

A ideia de que o mal, só por ser o mal, está destinado a perder é uma crença religiosa que o progressismo secularizou e perfilhou. No entanto, nem sempre ajuda a compreender as coisas, especialmente na sua versão laica, muito mais automática e simplória: o facto é que o terror faz sentido e é eficaz. Lembremo-nos do 11 de Setembro. Para começar, destruiu o à-vontade com que tínhamos passado a viver no Ocidente depois do fim da Guerra Fria. Depois, empurrou os EUA para intervenções na Ásia, dividiu as potências ocidentais, e sobretudo isolou a população islâmica no Ocidente.

Alguém se lembra de “islamofobia” antes de 2001? Era quase preciso recuar à Idade Média. Na década de 1990, só Samuel Huntington via na civilização islâmica um desafio. Todos os seus colegas politólogos andavam muito ocupados com a suposta ameaça dos “nacionalismos”. Depois de 2001, a história passou a ser outra. Foi então que os movimentos anti-imigração na Europa se expandiram decisivamente, depois de uma xenofobia já mais ou menos desacreditada ter sido reforçada pela desconfiança em relação ao Islão fomentada pelo jihadismo. As novas “manifestações de segunda-feira” na Alemanha ainda por enquanto encontram contraditores. Mas se as carnificinas jihadistas alastrarem, quantos mais europeus vão sentir que só as fronteiras fechadas e o nativismo de Marine Le Pen os poderão defender?

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O alvo do terror jihadista no Ocidente são, na verdade, as comunidades muçulmanas e a possibilidade de estas viverem a sua fé de outra maneira que não em estado de furor inquisitorial. O polícia assassinado na rua a seguir ao ataque à revista chamava-se Ahmed Merabet. Na redacção, morreu um revisor de provas com o nome de Mustapha Ourrad. Eram muçulmanos, como aliás todos aqueles que os jihadistas matam regularmente às dezenas e às centenas no Médio Oriente, no Afeganistão e no Paquistão. No Ocidente, o objectivo dos jihadista não é zelar pelo Islão, é comprometer os muçulmanos, é impedir a sua integração nas democracias, é estigmatizar o Islão, é reduzi-lo, aos olhos de todos, a uma simples plataforma de terror.

Não estamos perante uma lógica exótica. Conhecemo-la dos terrorismos da extrema-esquerda europeia da década de 1970. A tese era que não havia diferença entre a democracia representativa e a ditadura fascista: ambas eram organizações de classe para oprimir o proletariado. A violência dos guevaras de subúrbio estava calculada para provocar a violência do Estado democrático, de modo a que este revelasse a sua verdadeira natureza de ditadura de classe. O proletariado seria assim levado a optar pelo confronto violento. Os jihadistas, com o seu terror, contam pôr o Estado democrático e a diáspora muçulmana na mesma situação de tensão e conflito.

Tudo isto pode limitar as nossas liberdades, mas convém perceber como. Pode limitá-las se tivermos de começar a desenhar e a escrever protegidos pela polícia. Quantos vão preferir morrer de pé, como Charb morreu em Paris? Mas o terrorismo afectará as nossas liberdades sobretudo se os jihadistas conseguirem adquirir um ascendente sobre as populações muçulmanas que seja suficiente para obrigar as autoridades ocidentais a tratá-las globalmente como um risco de segurança. As nossas democracias estariam perante um dilema: como é que um país pode ser verdadeiramente livre se precisar de manter uma percentagem importante da sua população – no caso da França, 7,5% dos seus residentes em 2010 eram muçulmanos — sob suspeita e vigilância? É nisso que os jihadistas apostam, e é uma aposta que não devemos subestimar.

Neste momento, só há uma maneira de conter a “islamofobia”: é derrotar o jihadismo, e para derrotar o jihadismo vai ser preciso mais do que um hashtag de bons sentimentos.