Ontem, a pretexto da apresentação e discussão dos resultados do estudo DAWN-2: Atitudes, desejos e necessidades na diabetes, houve uns colegas que me perguntaram se eu considerava que o que o SNS dá a quem tem diabetes era bom. E a resposta é sim. Pode ser melhor, na medida das minhas possibilidades farei lobbying para que sejam dados mais apoios, mas a verdade é que tenho de reconhecer que alguém com diabetes tem sorte em estar em Portugal.

(Antes de continuar o artigo, gostaria de deixar claro que estou apenas a falar da perspectiva da diabetes de tipo 1. Ou seja, de pessoas, a que chamarei dt-1, cujo pâncreas deixou de funcionar e que morreriam em alguns dias se deixassem de ter acesso a insulina.)

A insulina é gratuita. Pelas minhas contas isso representa uma despesa para o Estado de cerca de 400€ por ano connosco (as necessidades variam tanto de pessoa para pessoa que não me atrevo a dizer quais são os valores médios). As lancetas e as tiras para medir a glicemia, absolutamente essenciais para um bom controle, são quase gratuitas. As insulinas disponíveis em Portugal são as mais recentes. Há uma excepção, a insulina FIASP, da Novo Nordisk, que está neste momento a ser lançada em alguns países e que ainda não chegou a Portugal. (Contactei Novo Nordisk para saber que passos estavam a ser dados para a introduzir em Portugal, mas deixaram-me sem resposta.)

O facto de ter esta doença na família fez-me ter contacto com pessoas do mundo inteiro e permite-me comparar o apoio que é dado em diversos países. E sim, em França dão mais apoio, mas há muitos países onde dão menos ou até bem menos. Neste domínio, os EUA parecem um país de terceiro mundo. Quem não tiver seguro de saúde está lixado. Nos EUA, para quem não tem seguro, a insulina é mais de dez vezes mais cara. Por causa disso, há quem esteja literalmente a racionar a insulina que consome, sofrendo as consequências de um mau controlo glicémico. Mesmo quem tem seguro pode ter azar. Sei de uma pessoa que é alérgica a uma das três insulinas de acção ultra-rápida (por coincidência a que a minha filha usa) e que tem um seguro de saúde que apenas comparticipa essa mesma insulina em quase 100%. Com as outras duas, apenas paga 20%. Ou seja, por ano, tem de pagar do seu bolso alguns milhares de dólares. Sei de uma família em que o pai teve de arranjar um segundo emprego para pagar a insulina do filho.

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Voltando ao mundo civilizado, sendo a insulina um medicamento essencial à sobrevivência de um dt-1, não admira que seja gratuita. Mas, na verdade, o Estado português vai mais longe. No início do ano, foi anunciado que o FreeStyle Libre, um sensor que é aplicado no braço e que permite medir a glicemia sem agulhas, ia ter uma comparticipação de 85%. E assim é. Este sensor foi lançado no mercado há pouco mais de um ano. Portugal foi dos primeiros países a comparticipar a sua compra. Theresa May, primeira-ministra inglesa, também ela dt-1, foi fotografada a usá-lo. (É aquela coisinha branca, redonda que podem ver no seu braço esquerdo). Não sei que melhor elogio fazer ao SNS do que dizer que os doentes portugueses têm acesso à mesma tecnologia da primeira-ministra inglesa.

É verdade que nem toda a gente se dá bem com estes sensores. É bastante impreciso com algumas pessoas e há quem seja alérgico à sua cola. Mas, para quem se dá bem, é um óptimo instrumento de gestão da diabetes. Nas primeiras semanas depois do anúncio da sua comparticipação, era comovente ver a alegria de tanta gente nos grupos privados do Facebook. Gente que há dezenas de anos picava os dedos 10 vezes por dia, pessoas que já estavam a perder a sensibilidade nos dedos, de repente, conseguiam fazer um controlo muito melhor da glicemia e com muito menos dor e esforço. Houve comemorações por todo o país. Na minha zona, as comemorações foram num restaurante especialista em francesinhas em Guimarães.

A alegria que vi nesses dias só é comparável ao desespero que vejo tomar conta de tanta gente por ter de voltar às picadas devido às falhas de fornecimento da Abbott. A empresa que fornece o sensor está a falhar miseravelmente no aprovisionamento às farmácias. Há regiões onde o sensor nunca chegou. Por todo o país, os doentes andam em roda-viva em busca de farmácias que os tenham disponíveis. Logo que uma farmácia os recebe, imediatamente se esgotam. A falha, vale a pena sublinhar, não é do SNS; é da Abbott, empresa privada, que não consegue produzir para as encomendas.

Sei bem do que a Abbott precisa para funcionar melhor. Precisa de concorrência. Logo que esta comparticipação se estenda a outros sensores disponíveis no mercado, tenho a certeza de que, por milagre, as falhas desaparecerão.

Na última vez que falei sobre este assunto, queixei-me de como o processo de atribuição de bombas de insulina estava atrasado. Entretanto esse assunto já foi resolvido e a lei está a ser cumprida. As crianças que têm direito às bombas estão a recebê-las. Mais uma vez, as reacções são comoventes. Foi há uma ou duas semanas que no nosso grupo privado do Facebook uma mãe descrevia como o pai tinha saído do hospital a cantar de alegria porque tinham dado uma bomba à filha.

Claro que nem tudo é perfeito. A bomba que está a ser distribuída pelo SNS não é o último grito. Mas, na verdade, é o penúltimo. É muito boa e já permite melhorar a qualidade de formas que quem não tem a doença por perto não consegue imaginar.

O meu principal amargo de boca, por estranho que pareça, é a prioridade que é dada às crianças. Parece que nos esquecemos que os adultos também já foram crianças. E que quem tem hoje 35 anos e foi diagnosticado aos 5 passou a sua infância e adolescência extremamente limitado e a probabilidade de sofrer ou vir a sofrer complicações graves é muito maior. Não só porque não teve bomba, mas também porque as insulinas eram piores, as seringas para as injecções multi-diárias eram muito mais dolorosas e o controlo da glicemia bem mais impreciso e difícil de fazer.

Custa-me, e, novamente, comove-me, ver pessoas que têm diabetes há dezenas de anos ficarem felizes porque as crianças de agora, algumas das quais têm diabetes há “apenas” alguns meses, terem direito àquilo por que tanto anseiam. E ficam a aguardar a sua vez. Por vezes, apetece-me escrever um artigo apenas com copy-paste do que vou lendo nos grupos privados do Facebook. Para que se percebam os desafios dos dt-1, para que se aprecie a sua coragem, a sua generosidade, as suas alegrias, os seus medos, o desgaste de estar sempre, mas mesmo sempre, 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano e para o resto da vida, alerta.

Quando revelei que a minha filha era dt-1, houve uma amiga, que tem uma outra doença crónica muito chata, que me disse que eu ia conhecer pessoas fantásticas, que faziam das fraquezas forças. No estudo ontem apresentado, muitos clamavam pela criação de grupos de apoio. E têm razão. Foi quando eu me juntei a um desses grupos, os diab(R)etes, que a profecia da minha amiga se concretizou e conheci as tais pessoas fantásticas, generosas e incansáveis. Se tem diabetes, junte-se a nós. Este grupo nasceu com uma petição a pedir a comparticipação do tal sensor Libre de que falei acima. Mas, como se vê, ainda tem muito trabalho pela frente. Quantos mais se juntarem, melhor.