1. Sabe-se há muito, não há quem não saiba, que as próximas legislativas são absolutamente inseparáveis do dia 5 de Outubro: é como se houvesse dois actos eleitorais em que o primeiro só ficará completo com o segundo. Pergunto: o que vai fazer o vencedor com o seu próprio resultado? Virar-se-á para quem, como, e propondo que prioridades? Mistério, mas ele dura há tempo demais.

(E não, nem tudo depende do resultado eleitoral e nem todos os acordos são iguais).

Espantou-me por isso que a pesada mochila da estabilidade governamental que Passos e Costa levam hoje às costas não tivesse sido aberta no debate televisivo entre ambos. Contava-se com isso, o país precisa disso. Que contém essas mochilas? Vontade de futuras coligações, acordos governamentais, entendimentos parlamentares? E em que direcção do horizonte político?

Passos sinalizou a urgência do tema, abriu janelas. Costa fechou-as logo, apoiado na ficção inverosímil de uma maioria absoluta. É certo que não se pode dar ao luxo de pré-garantias, dada a exuberante dissonância entre as alas que compõem hoje o PS. Do sector radical (que rejubilou com a eleição de Corbyn pelos trabalhistas ingleses, como há meses rejubilara com Tsipras) ao contaminante grupo socrático (capaz de indecentes insultos à RTP e com eles permitindo todas as suspeitas sobre a má consciência deste grupo), passando pelos discretos moderados do Largo do Rato, a empreitada não se recomenda. Nesta trapalhada sem pulso, que peso terão as boas intenção de alguns economistas bem comportados? Seja como for – e era esse o meu ponto – a recusa do candidato socialista em enunciar ou anunciar o futuro da governabilidade, pareceu-me politicamente perigosa.

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2. Teriam visto? Teriam aqueles idosos com quem me avisto hoje, arrastando-se pelos corredores de um pequeno supermercado de uma cidade de província, ligado a televisão? Teriam eles atentado nas palavras trocadas naquela noite por Costa e Passos?

E estes cujas fotos – reais – vejo agora no suplemento publicitário de uma empresa – jovens, grupos de amigos, casais de meia idade, gente da terceira idade – apresentados como vencedores da crise por terem recorrido à imaginação e ao esforço e chegado ao sucesso em inesperados ofícios, ou inventado outros? Fariam parte dos três milhões e meio de espectadores do único debate? (os outros,mal ou bem, são sempre vistos como “não contando”)

É difícil descortinar o que terá ficado de substancial, interessante ou sequer indicativo em toda essa multidão que não cabe no apertado perímetro ar do tempo/bem pensante, capturado pela opinião de esquerda que instantaneamente ocupou e, como habitualmente, decretou. Mas fiquei curiosa: que sobrou dessa hora e tal de esgrima na gente comum, normal, anónima e não só nos (cobiçados) indecisos? Os esperançosos, os conformados, os descrentes, os indiferentes, os zangados?

Ninguém lhes perguntou e eu também não sei.

3. Pelo contrário, olhando o écran da televisão a partir de uma improvável localidade no Norte, rodeada de um grupo de amigos de variadas proveniências partidárias que andavam em romagem no Alto Minho, lembro-me do que retive: não vi o desenho do futuro e não ouvi o mundo, nenhum mundo, Europa, refugiados, Grã-Bretanha, Síria, Rússia, China, Brasil. Ninguém se apeou. Depois, mais do que saber quem ganhou, quem perdeu, quem deixou entrar golos ou quem rematou à baliza, o que julgo que se viu – ou estarei enganada? – foi de novo esse produto politicamente tónico que é a confiança. O poder de a gerar, a possibilidade de a produzir. Como se terá reparado naquele diálogo fechado sobre si próprio, entre uma lebre avisada e um gato assanhado.

Ao pé disto – e já que o debate foi avaliado segundo uma inconcebível linguagem futebolística – não me surge como relevante a faculdade de enfiar golos numa baliza. E ainda menos em sentido figurado.

4. Parece-me ocioso deixar aqui a pergunta sobre o número de vezes que leríamos ou ouviríamos dizer que “Passos insulta jornalista em directo” caso tivesse sido ele e não Costa a menorizar agressivamente um jornalista com o extraordinário pretexto de que ele estava ao serviço do poder. O mesmo ocorrera há meses com um sub-director do Expresso e, ninguém esqueceu, José Sócrates levou anos nisso. Pensávamos porém que Costa não era Sócrates mas a repetição automática destes, como dizer?, impulsos, obriga a reflectir: a partir do uso público desta forma insultuosa de agir politicamente, todas as dúvidas são legitimas. Quando António Costa, se for o caso, for contraditado no Parlamento e invectivado pelas bancadas da oposição disparará insultos em vez de argumentos? A discordância será vaiada? O contraditório abolido?

Os jornalistas pelos menos, estão avisados. E a RTP, essa então ficou avisadíssima.