Fernando Medina diz que precisa de todos nós, lisboetas, e encheu a cidade de cartazes de fundo branco, vazio, preenchido com duplas fotografias de apoiantes emparelhados, cujos ombros se sobrepõem e diluem no efeito gráfico das cores nacionais justapostas, como que a criarem a ilusão patriótica de que uns não existem sem os outros. O ligeiro desfoque provocado por este ombro a ombro, sombreado a vermelho e verde, cria uma certa distorção que também gera confusão. Não são muito felizes, os cartazes.
Abstraindo da qualidade gráfica e da opção dos designers e consultores de comunicação, o que Fernando Medina nos quer dizer com estes duetos mais ou menos desafinados, é que precisa de todos e gostaria que todos estivéssemos com ele, por ele, nas próximas eleições autárquicas. A ideia de que uns dão vida aos outros, e todos damos vida à cidade, é politicamente correcta, mas isso não quer dizer que estejamos todos em sintonia. Aliás, sem querer, o desfoque nos cartazes acaba por sublinhar isso mesmo. Há zonas de sombra. Muitas.
Foco-me numa das que mais nos afectam a todos, todos os dias: o trânsito.
Fernando Medina não aparece nos cartazes, mas sabemos bem o que grita dia após dia aos lisboetas de Lisboa: vâo-se embora! Não têm lugar aqui, na cidade onde trabalham e moram. Lisboa é para os turistas e para os ‘da noite’. Ponto.
Os ‘do dia’, que saem de casa de manhã e voltam no fim da tarde, trabalham arduamente e sustentam grande parte da cidade, mas têm direito a muito pouco. A cidade tornou-se um lugar difícil para quem cá mora, mas curiosamente está a ficar um paraíso para os que a visitam e até para os que a querem comprar. Linda e cheia de luz, Lisboa transborda como nunca. Os estrangeiros compram e arrendam tudo o que é bom e bonito, os preços disparam, os turistas passeiam alegremente a pé, de tuk tuk, em carrinhos amarelos de feira, em autocarros descapotáveis e engenhos anfíbios, mas os lisboetas, esses, ficaram sem casas com rendas acessíveis, sem faixas de rodagem nas estradas onde precisam mesmo de circular, sem lugares para estacionamento e sem transportes públicos eficientes.
Os passeios amplos e o chão liso têm imensas virtudes e reconheço-as todas, pois tenho visto mais pessoas em cadeiras de rodas a passear com autonomia pela cidade e mais gente a circular a pé ou de bicicleta, mas era preciso calibrar medidas. Estes passeios larguíssimos seriam bons, se não fossem tão exagerados. Se não tivessem acabado com faixas de rodagem e não tivessem descartado lugares de estacionamento, lá está. Ou seja, se não fossem agressivos para os moradores que obrigatoriamente moram em suas casas e imperativamente se deslocam de carro porque não têm alternativas produtivas para chegar aos empregos ou aos pontos da cidade onde entregam e recolhem os filhos.
Na Av. 24 de Julho, para dar apenas um exemplo, os passeios ficaram descomunais e muito vantajosos para ‘os da noite’ porque lhes permitem multiplicar esplanadas e lugares de encontro para uns se divertirem e outros fazerem negócio, mas os desgraçados ‘do dia’, que têm horários fixos para entrar e sair do trabalho, ou deixar os filhos na escola, esses perderam o pouco espaço que já tinham. Hoje em dia é aflitivo sair e voltar a entrar em casa em toda a extensão da beira-rio ( e não só!).
Há menos faixas de rodagem e como também deixou de haver lugares para estacionar nesta mesma 24 de Julho – para manter o exemplo que todos conhecemos e nos toca a todos por ser passagem obrigatória para quem precisa de ir à Baixa e ao perímetro alargado do centro histórico – as pessoas optam por deixar os carros em plena estrada, apropriando-se das poucas faixas de rodagem que restam, sem que alguém se atreva a desfazer este escandaloso equívoco. Bonito serviço. Ficamos todos a perder. Todos, os ‘do dia’, quero dizer, pois os ‘da noite’ circulam com outra descontração e infinitamente menos trânsito.
O maior escândalo destas opções viárias e rodoviárias é que os transportes públicos continuam a estar muito aquém das necessidades e podemos ficar de pé, à torreira do sol ou debaixo de terra, à espera de um autocarro, de um eléctrico ou de um Metro que nunca mais chegam. No “capítulo Metro”, importa referir que vezes demais anda com metade das carruagens, coisa muito pouco simpática para quem usa este meio de transporte, pois cria desconforto e gera magotes de gente ensardinhada nas poucas carruagens que andam para trás e para a frente.
Ah! Não me posso esquecer de certas escadas rolantes do Metro, também, que passam semanas e meses avariadas, obrigando as pessoas a subir longas escadarias de pedra com os seus carregos habituais que podem ser malas, mas também podem ser filhos pequenos ou carrinhos de bebé, pois nem todos os elevadores para utentes considerados ‘prioritários’ funcionam ou trazem as pessoas até à superfície. Isto, para não falar dos mais velhos, que sobem e descem com extrema dificuldade, já se sabe.
Os turistas de pé descalço sofrem como nós, mas são os únicos, porque os outros, os que têm poder de compra, alugam tuk tuks, carros, carrinhas e camionetas que estacionam rigorosamente onde querem, mesmo que isso impeça o trânsito de circular (vidé Belém e Av. Brasília todas as manhãs, sem excepção). Mais, como os eléctricos já se alugam, o caos também passa por longas filas que se formam porque o eléctrico vai em modo passeio, com paragens inesperadas e demoradas. Mau demais.
Ainda em matéria de trânsito, acessos e caos na cidade, importa deixar muito claro que os turistas, e os que trabalham para eles, são os maiores beneficiários da nova (des)ordem camarária: os tuk tuk, porque se reproduzem como coelhos, andam devagar, empatam o trânsito e roubam lugares aos moradores em todos os bairros históricos, mas não só; as camionetas porque ocupam lugares imprevistos ao longo de miradouros e nas entradas de monumentos, de museus ou de pastelarias finas, ficando paradas em plena faixa de rodagem, a obstruir o trânsito; as motas eléctricas de aluguer porque são deixadas não importa onde, e chegam a ficar aos molhos no meio da estrada ou em lugares histriónicos que impedem a passagem e até o livre trânsito dos peões. Só visto, porque contado quase nem dá para acreditar.
Como se tudo isto fosse pouco, Fernando Medina aparentemente vive muito bem com a forma como a EMEL actua na cidade. Discricionária e intermitente, usa critérios avulsos e incompreensíveis. Bloqueia violentamente o acesso de moradores às suas moradas, mas esquece-se de fazer o mesmo com os selvagens que deixam o carro onde querem, como querem, durante a noite (especialmente os que vão para a ‘noite’). Um agente da EMEL é um sujeito quase sempre estranho e com comportamentos erráticos. Tanto pode multar um morador que estacionou na sua rua (falo de ruas literalmente abalroadas por gente que não mora ali, mas deixa os carros ali para ir para a ‘noite’, lá está, sem que nada lhes aconteça), dizia eu, que tanto pode multar um morador que estacionou bem, só porque não deixou 5m de estrada livre até ao próximo cruzamento, como pode passar e perceber muito bem as razões desse mesmo morador, passando sem bloquear ou multar.
Num mundo ideal e numa cidade perfeita, gerida de uma forma mais que perfeita, até seria compreensível esta lógica de guardar 5m livres até ao cruzamento. O problema é que em ruas de 20 metros úteis (cheias de cruzamentos, pois há muitíssimas transversais) é impensável guardar espaço livre para respeitar a regra dos 5m. Aliás a forma de actuar da EMEL é tão bipolar, digamos assim, que durante semanas a fio os moradores podem usar esses mesmos 5m (que são o pouco que lhes sobra da sua rua) para estacionarem os seus carros, que todos os agentes reconhecem a regra, mas há um dia em que sai para a rua uma brigada mal humorada e, então, as multas e reboques são a eito. Até dói.
Em plena campanha, Fernando Medina diz que precisa de todos, mas não explica como nos vai ajudar a todos a viver numa cidade melhor. Muito pelo contrário! Afixa cartazes sem mensagem digna de nota, apenas a pedir sem dar mais nada de volta. Fernando Medina herdou a Câmara de António Costa e cumpriu um mandato com assinatura própria, reconheço. Deixou obra feita e à vista, mas falta fazer muita coisa. Visível e invisível. E falta perceber se vai continuar a empurrar os lisboetas para fora de Lisboa. Para longe da sua cidade. Para periferias onde os turistas não chegam e os bons transportes públicos também não.
A cidade vai sendo povoada por estrangeiros que compram quase tudo, porque podem, e lhes dão um estatuto aparte, livre de impostos. Lisboa vai-se enchendo de gente que usa e abusa, que suja muito e gasta pouco, gente de todas as idades e origens que desfila de copo de cerveja na mão pela noite dentro, gente que se abastece nos supermercados low cost e aluga hostels baratos, que faz muito barulho e muita porcaria (todas as madrugadas há rapazes e homens a fazerem chichi directamente contra as portas e paredes de casas abrangidas pelo círculo alargado da ‘noite’ de Lisboa, deixando um rasto pestilento e um cheiro nauseabundo); gente que acorda os moradores em ruas outrora tranquilas, gente sem interesse absolutamente nenhum que vira caixotes do lixo às 5h da manhã e os põe a rolar pela calçada abaixo sem que alguém com autoridade apareça para travar a brincadeira, enfim, gente que todos nós, moradores, dispensaríamos para sempre dos nossos bairros.
Era preciso saber mais, muito mais, sobre o plano de gestão camarária de Fernando Medina para os próximos tempos. Era preciso saber o que vai fazer nos bairros degradados e nas comunidades vulneráveis, que estão longe da vista dos turistas, mas crescem a olhos vistos; era vital que nos mostrasse caminhos em vez de impedir ruas e acessos; era essencial que nos fizesse sentir todos cidadãos de primeira, e não habitantes de segunda ou terceira categoria. Acima de tudo era fundamental que nos dissesse que nós, lisboetas, somos a sua primeira e última prioridade, pois hoje em dia facilmente nos sentimos estrangeiros na nossa cidade. Estrangeiros no sentido mais estranho do termo, note-se. Estrangeiros, como se fossemos nós os exóticos forasteiros e eles, os de fora, os verdadeiros e queridos moradores.