É quase fatal. À medida que a soberania externa de um Estado (tal como se manifesta na sua relação com os outros Estados) vai diminuindo, a sua soberania interna (a relação entre representantes e representados) tende igualmente a enfraquecer-se. O espaço da deliberação sobre questões substantivas restringe-se monumentalmente – o essencial é decidido fora – e as coisas complicam-se na sociedade, favorecendo o aparecimento de movimentos que defendem decisões radicais.
O que se passou na Grécia, a vitória do Syriza, aliado depois no governo a um partido de direita anti-europeia, cujo líder acusa “os judeus” de fugirem aos impostos, é exemplar disto. Primeiro, a simples entrada na União Europeia diminuiu já o espaço da soberania externa e, depois, a adopção do euro piorou ainda mais as coisas. Dir-se-á que noutros países que estão na mesma situação (Portugal, por exemplo) não se corre o risco de uma coisa assim. Bom, finjamos esquecer o que se arrisca a passar em França e talvez em Espanha. E reconheçamos a particularidade do caso grego. Um Estado que data do século XIX, uma capital que, ainda no início do século XX, era constituída apenas por pouco mais que um vago casario em torno da Acrópole, uma cultura política agonística e violenta e uma sociedade onde a corrupção, a permanente prática de toda a espécie de incumprimentos e a burocracia grassam – tudo isso inclina, sem dúvida, ao pior. Mas essa particularidade por si só não chega. É necessário que uma mãozinha ponha o cilindro a rolar.
(Um exemplo da burocracia. Para uma pessoa se candidatar a um posto universitário é preciso apresentar vinte exemplares de cada uma das suas publicações – os únicos a serem lidos serão certamente aqueles que caírem nas mãos de quem nos quiser impedir de obter o lugar e que procurará neles pequenas ou grossas asneiras.)
Não é portanto excessivamente surpreendente que, na Grécia, as condições exógenas ligadas à diminuição da soberania externa, com as suas repercussões no plano da relação entre representantes e representados, junto com as condições endógenas, tenham levado aonde levaram, a uma decisão pelo impossível que vai certamente acabar muito mal.
E não se venha com o argumento de que a Grécia, “pátria da democracia”, mais uma vez deu uma lição sobre o que é a democracia. Não se venha com isso pelo menos por duas razões. Primeiro, porque a ligação dos actuais gregos, que, entre outras coisas, viveram sob o domínio otomano durante séculos, aos atenienses do tempo de Péricles e de Sócrates é remotíssima. Se se quiser, por comparação, o Prof. Freitas do Amaral é praticamente indistinguível de Afonso de Albuquerque, por menos terribil que nos pareça e não o imaginemos facilmente como Leão dos Mares. Segundo, porque, como está na cara, a eleição do senhor Tsipras foi uma pura decisão de revolta em que a racionalidade e a deliberação pesaram muito pouco. Que se saiba, gestos deste tipo não são propriamente modelos de escolha democrática, que supõe exactamente racionalidade e processos deliberativos mais ou menos conscientes.
Agora uma pergunta. Será que a culpa desta triste situação é toda daquela gente que se habituou a benefícios concedidos por razões verdadeiramente extraordinárias, que provocam galhofa considerável por esse mundo fora (cabeleireiras como profissão de risco, etc.)? Não, longe disso. A União Europeia tem, desde há muito, muito a montante de Angela Merkel, que tem feito o seu melhor para manter o edifício junto, uma grande culpa, uma culpa que, por sinal, partilha algo de comum com a dos gregos. Não só a culpa de ter permitido a entrada na Grécia no euro quando se sabia perfeitamente que as contas gregas eram completamente falsificadas, mas, mais geral e fundamentalmente, a culpa de ter pensado que a união monetária se faria sem dificuldades redibitórias vindas das diferenças de desenvolvimento económico, de cultura e das paixões que diferenciam os vários povos.
Não são só os gregos que acreditam no Pai Natal. Muita gente que presidiu à construção europeia também acreditou. A crença na omnipotência do pensamento – na possibilidade de o pensamento, por si só, agir magicamente sobre a realidade (“Acabou a austeridade!”) – não parece ser propriedade exclusiva dos gregos. Jacques Delors, por exemplo, partilhava-a a níveis muito assinaláveis.
Nisso, a União Europeia não diferiu muito do nosso Sócrates nacional, que num dia nos queria iguais aos irlandeses, para, na semana seguinte, nos desejar finlandeses, conseguindo apenas que, no fim, quase nos tornássemos venezuelanos à força. Aquilo que a União Europeia tudo fez para esquecer foi a rugosidade da realidade. A perda tendencional de uma mesmo que vaga soberania externa acarreta, como disse no princípio, a perda da soberania interna, e essa perda traz consigo desordem. As paixões recalcadas retornam sob as piores vestes, das quais o nacionalismo exacerbado é apenas um entre muitos exemplos.
Certamente que a coisa não é idêntica em todo o lado. Por razões que têm a ver com essas mesmas paixões, Portugal, como se diz com razão, não é a Grécia, e os maluquinhos que queriam que fosse não terão sorte nenhuma. Mas outros países podem acabar lá perto. Quer dizer: podem decidir votar em demagogos populistas do tipo do senhor Tsipras e a coisa dar para o torto.
Num dos seus diálogos, o Ménon, Platão, procurando mostrar que, em certas ocasiões, um conhecimento aquém daquele que a ciência nos fornece cumpre satisfatoriamente a sua função, dá o exemplo do caminho para Larissa (uma terra muito feiosa, de resto). Podemos chegar a Larissa (Ermesinde, se quiserem) sem ciência. Infelizmente, quando se acumulam erros sobre erros, até esse conhecimento se torna ineficaz e não chegamos a Larissa nem a lugar nenhum. É essa a moral da recente história da Grécia.
Por cá, António Costa, que ficou muito contente com a vitória do Syriza, devia ter noção disso. Há em Portugal uma grande massa de socialistas anónimos que, entusiasmados pelo exemplo grego, está disposta, em reuniões confessionais, a repetir vezes sem conta “Morte à austeridade!”. Mas a maioria do País quer ainda guardar o saber mínimo que lhe permita orientar-se nesta confusão e percebe relativamente bem as razões da austeridade, bem como a grande responsabilidade do PS de Sócrates na coisa. Os portugueses não são tão beócios assim.