Durante muitos anos, ouvia-se com frequência uma imagem usada pelos defensores do federalismo: a União Europeia é como uma bicicleta; se pararmos de pedalar (leia-se alargar a mais países e aprofundar as políticas de integração) cai. Esta imagem era sempre coroada com a prova empírica: nunca ninguém quis sair da UE e o movimento foi sempre para acrescentar mais amarras e laços aos já existentes.

Esta bicicleta saltou da minha memória várias vezes durante o discurso do Estado da União proferido por Jean-Claude Juncker, na passada terça feira. Vamos por partes. Em primeiro lugar é preciso fazer três salvaguardas: o presidente estava a defender uma visão pessoal (dando o pontapé de saída para o tão necessário debate) e quer evitar a todo o custo a ideia da Europa a várias velocidades, que tem vindo a ser defendida por Emanuel Macron, com discurso sobre o assunto já agendado para o final de setembro (convenientemente depois das eleições alemãs). O presidente também se preocupou sugerir a criação de um mecanismo permanente de segurança financeira para prestar auxílio a qualquer estado que se encontre em dificuldades – procurando assim afirmar que não aceita uma Europa de centro e outra de periferia. Juncker fez, em parte, o que lhe competia – defender as suas damas, a Comissão e a UE – mas ainda assim, o seu otimismo excessivo e uma agenda verdadeiramente ambiciosa e fundamentalmente federalista, deitaram por terra as esperanças de muitos (inclusive as minhas) de que escolhesse uma espécie de caminho do meio, em vez de uma corrida de bicicleta.

Passo a explicar: a visão do presidente é de que a União se encontra perante uma janela de oportunidade (curta), relacionada como o descolamento da crise económica e financeira da última década: o desemprego caiu e o crescimento económico está a aumentar. Por isso este é o momento ideal para lançar uma “agenda positiva” para o futuro (objetivos a atingir até 2025) com seis pontos essenciais (1) o alargamento de Schengen à Bulgária e à Roménia; (2) o objetivo de que o Euro seja a moeda de todos os estados da União; (3) a criação de um Pilar Europeu dos Direitos Sociais; (4) o alargamento da UE aos estados ocidentais dos Balcãs e a exclusão da Turquia, devido ao seu crescente desvio das instituições democráticas; (5) a criação da figura do Ministro Europeu da Economia e da Finanças; e (6) a acumulação dos cargos de Presidente da Comissão Europeia e de Presidente do Conselho Europeu numa só pessoa. Juncker disse que os tratados existentes servem perfeitamente e que não quer mudanças institucionais. Mas três destes pontos correspondem precisamente a essas mudanças institucionais, e os seis em conjunto estão profundamente ligados às rodas da bicicleta (que, já temos provas que cheguem, às vezes de tanto pedalar, salta-lhe a corrente – e no Brexit valeu-nos um enorme trambolhão).

Mas Juncker parece ter-se esquecido de duas questões fundamentais. Por um lado, a União Europeia é uma instituição que muito poucos estados membros querem deixar (e bem), mas que ao mesmo tempo é mal-amada pelas populações, que lhe imputam muitos dos seus problemas concretos e, ao mesmo tempo, perdem-se nas burocracias, na profusão de instituições e na incapacidade de chegar aos decisores políticos. Juncker referiu várias vezes a necessidade de reforçar a democracia no espaço europeu (uma espécie de compromisso em si só meritório), mas esqueceu-se que isso só pode verdadeiramente acontecer com instituições supranacionais mais acessíveis aos cidadãos. É importante não esquecer que o único órgão eleito diretamente é o Parlamento Europeu, que detém muito menos poderes do que a Comissão e o Conselho.

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Por outro lado, por muito que acredite que os ventos estão a favor da UE, cabia ao presidente da Comissão Europeia perceber que não há só dois caminhos, como afirmou no discurso – o do isolamento ou, em alternativa, o do reforço (federal) da união. Há ainda uma terceira via que é a da (re)construção de uma União fragilizada pela polarização das sociedades de muitos dos países – precisamente entre europeístas e antieuropeístas, os últimos quase sempre organizados e eleitores de partidos nos extremos – e o namoro com o autoritarismo por estados como a Hungria e a Polónia. Não basta dizer que a “democracia é obrigatória”. De boas intenções está o inferno cheio. É preciso (também) debater alternativas que incluam propostas europeístas não federalistas e que aceitem que a progressão de uma instituição política não é uma linear corrida para frente. Tem obstáculos, paragens, momentos de reflexão e ajustes às realidades conjunturais.

Por estas razões, gostaria de ter ouvido falar de uma forma mais concreta de pacificação social e novas formas de integração de minorias, de reconciliação das populações com as instituições supranacionais. E gostaria, principalmente, que Juncker tiveste posto o dedo na ferida e tivesse perguntado se o modelo de integração está esgotado e tem de ser repensado em novos moldes. Estes são os problemas existenciais que a UE tem de enfrentar. Referências breves e sem propostas concretas fizeram do discurso do Estado da União uma espécie de déjà vu, ainda por cima desatualizado.

Não quero deixar de dizer que o fim da União Europeia ou a Europa a várias velocidades teriam consequências negativas, especialmente para estados pequenos como Portugal, tão dependente da pertença às instituições internacionais. Mas também há duas críticas que não podem deixar de ser feitas: dar passos maiores que as pernas, ainda mais enraizados num futuro que ainda não existe, é meio caminho andado para que as coisas corram mal. E tentar reconstruir uma casa sobre ruínas em vez de consertar os alicerces – leia-se uma série de problemas graves que deviam levar os líderes europeus a repensar o projeto em vez de fugir para frente – também não é uma receita animadora. Até porque os ventos mudam, e se o atual é favorável (segundo Juncker) nunca se sabe como vai ser o de amanhã. Tantas vezes dizemos que os populistas enganam os cidadãos com imagens de recuperação de um passado grandioso que nunca vai voltar a existir, que acabamos por nos esquecer que (parte) das elites europeias também glorificam um futuro que pode nunca chegar.