Fernando Pinto Monteiro tem um problema. Não com o passado, nem com o presente, mas sim com o futuro: está numa corrida contra o tempo para evitar que a história o recorde como o procurador-geral da República que fez tudo para não investigar José Sócrates — o homem que o indicou para o cargo. É uma luta difícil, refira-se, por que os factos são chatos, incómodos mas suficientemente públicos para falarem por si.

Tal luta faz-se através do único meio que tem neste momento: o uso da palavra através dos meios de comunicação social. Ao contrário dos seus antecessores Souto Moura e Cunha Rodrigues (que preferem o recato que o seu estatuto de magistrados impõe), Pinto Monteiro gosta de dar entrevistas — a vaidade é um pecado que o assiste e não é em doses reduzidas. Mas de cada vez que fala em público a ideia que fica é que mais valia ter ficado calado.

A entrevista que deu ao Público/Rádio Renascença esta quinta-feira é apenas o último exemplo. É confrangedor ler e ouvir a entrevista de um homem que exerceu um dos mais altos cargos da nossa República e constatar a facilidade com que mente, deturpa ou simplesmente inventa — além do oportunismo evidente ao querer associar-se a Rui Rio e à sua luta contra o segredo de justiça.

Tudo para dizer, com os olhos arregalados e o braço bem levantado como aquelas crianças ansiosas por serem reconhecidas, que “investiguei todos os bancos e estão aí a ser julgados” (numa alusão à Operação Furacão) “quem criou o Apito Dourado fui eu” e que deu ordens para se “investigar tudo” — e que só não “investigou” José Sócrates e o BES de Ricardo Salgado porque, infelizmente, não havia elementos.

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Bem vistas as coisas, é bastante provável que, no entender de Pinto Monteiro, ele tenha sido o criador da luta contra o crime económico-financeiro. Além de que, no seu tempo como procurador-geral, era “principescamente tratado em Angola”, tinha “relações ótimas” com Luanda e audiências com uma pessoa inacessível por natureza: José Eduardo dos Santos, presidente da República de Angola.

Infelizmente, e como se diz agora, as declarações de Pinto Monteiro são mais “fake news” do que os twitters de Donald Trump.

Não, Pinto Monteiro, não “criou o Apito Dourado”. O processo Apito Dourado ficou conhecido em Abril de 2004 com a detenção de Valentim Loureiro — era então Souto Moura o procurador-geral da República em exercício de funções e o investigador dá pelo nome de Carlos Teixeira, um procurador-adjunto de Gondomar que não hesitou em escrutinar o homem que não só era a representação perfeita da promiscuidade entre o futebol e a política como tinha acumulado poder de forma despudorada.

Pinto Monteiro, infelizmente para si, também não inventou a Operação Furacão. O inquérito iniciou-se em 2004 e um ano antes de o então procurador-geral tomar posse, o juiz Carlos Alexandre e o procurador Rosário Teixeira lideraram as buscas realizadas aos departamentos de private banking do BES, BCP, BPN e Finibanco. Havia suspeitas de crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais com esquemas de facturação falsa e de sociedades offshore criados pelos próprios bancos e propostos aos respetivos clientes — sempre em prejuízo do Estado. O mérito da investigação pertence a Rosário Teixeira e ao então desconhecido inspector tributário Paulo Silva que descobriu o esquema dos bancos no distrito de Braga.

O auto-elogio que o ex-procurador-geral pode fazer na Operação Furacão é ter deixado a procuradora Cândida Almeida transformar o Departamento Central de Investigação e Ação Penal numa espécie de guarda avançada da Autoridade Tributária, colectando os impostos que não tinham sido pagos por algumas das maiores empresas nacionais e deixando cair as acusações por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Independentemente dos crimes terem sido cometidos (e, de acordo com o Ministério Público, terão sido cometidos), as empresas e os empresários pagavam os impostos em falta e o crime caía. Foram assim recuperados mais de 146 milhões de euros, segundo o último balanço conhecido. Ser uma espécie de cobrador de impostos, isto sim, Pinto Monteiro pode orgulhar-se.

O mais grave de Pinto Monteiro na entrevista ao Público/RR, contudo, é afirmar que há meios de comunicação social que têm as escutas telefónicas do processo Face Oculta que envolvem José Sócrates, insinuando que os media não as publicam porque não têm interesse jornalístico. Esta nem os anónimos dos Truques conseguiram ainda inventar.

Foi Pinto Monteiro quem, cinco meses após receber das mãos do procurador João Marques Vidal tais escutas, decidiu promover a eliminação das mesmas e recusou abrir o inquérito criminal proposto pelo titular do processo Face Oculta. Tal como foi também o então procurador-geral que, após a concordância de Noronha de Nascimento (presidente do Supremo Tribunal de Justiça), promoveu a eliminação das escutas e até determinou a destruição física dos respetivos cd’s (até no suporte Pinto Monteiro erra ao falar em cassetes) através de fogo e de tesouradas, num autêntico auto de fé judicial.

Não deixa de ser uma ironia que este homem que, em conjunto com Noronha de Nascimento, promoveu um golpe judiciário, ao impedir que as suas decisões fossem escrutinadas por outros magistrados, esteja agora a insinuar que a comunicação social não revela informações que poderiam ter permitido descobrir mais cedo as ligações que foram descobertas na Operação Marquês — tudo com a insinuação de que nada contém. Alguma coisa devem conter e, se algum dia forem conhecidas, aposto que não vão deixar Pinto Monteiro muito bem na fotografia.

Fernando Pinto Monteiro representa, como a sua participação no processo Face Oculta demonstra, uma face obscura da Justiça. Uma Justiça obscura que não gosta de ser escrutinada, uma Justiça próxima do poder político que vê os representantes do Ministério Público como meros funcionários públicos e não como verdadeiros magistrados dotados de autonomia e uma Justiça que não quer exercer o seu papel constitucional de contra-freio aos abusos dos poderes executivo e legislativo — antes prefere andar nas saias do poder político à espera de migalhas de poder e de influência.

Durante o seu mandato, e ao contrário do que costuma apregoar, Pinto Monteiro foi igualmente a face de uma justiça para ricos e poderosos e outra para o resto da população. Foi durante o seu mandato que foram inventados os despachos intercalares de arquivamento de figuras relevantes da sociedade portuguesa (como o ex-ministro Luís Nobre Guedes) e a ideia de que os titulares de cargos políticos tinham direito a despachos de inocência a meio de um inquérito depois de uma notícia de um jornal pela exposição mediática de que eram vítimas.

Ao fim e ao cabo, a sua vaidade fez com que Fernando Pinto Monteiro também tenha desejado ser um dos poderosos do país. Um procurador-geral que preferia ser visto ao lado de um político como José Sócrates (“eu apreciava o estilo dele [Sócrates]”) em megas-lançamentos de livros do ex-primeiro-ministro, do que ao lado dos procuradores que liderou — ou pelo menos, devia ter liderado — e que hoje são os maiores críticos da sua passagem pela Procuradoria-Geral da República.

Infelizmente, Pinto Monteiro será mesmo recordado numa nota de rodapé da história com o procurador-geral que não quis investigar José Sócrates. É chato, incomoda mas é a verdade.