A salvação dos depositantes do BES transformou-se num autêntico pesadelo para os bancos do sistema financeiro português que têm accionistas com bolsos pouco fundos. Quem são eles? Basicamente, com risco de perder muito dinheiro, o BCP. Os outros ou têm dimensão para aguentar eventuais perdas, como o BPI/La Caixa e o Santander, ou são do Estado, como a Caixa. Na liga dos mais pequenos o BIG, pela sua solidez, é o que está melhor preparado para eventuais embates. Mas todos eles sabem que a conta do BES, directa ou indirectamente, irá parar aos contribuintes.
No retrato de ganhos e perdas não é de estranhar que o BCP seja o protagonista da guerra, sob a forma de “murrinhos na mesa”, contra as soluções que têm sido encontradas para a resolver a “resolução” do BES. O banco liderado por Nuno Amado passou das criticas aos actos e avançou com um processo administrativo, em que pede para ser avaliada a legalidade das responsabilidades que o Fundo de Resolução assumiu no acordo de venda do Novo Banco ao fundo Lone Star.
Basicamente, o Fundo de Resolução deu ao comprador uma garantia de 3,9 mil milhões de euros, que será accionada caso se registem perdas na venda dos activos que se pretende que fiquem fora do banco (o side bank). Trocado por miúdos, se esse património for vendido por um valor inferior ao que está contabilizado no balanço do Novo Banco, a perda será suportada pelo Fundo de Resolução, ou seja, pelos bancos do sistema.
Com uma garantia daquela dimensão, o BCP expõe-se a uma perda da ordem dos 800 milhões de euros (20% do 3,9 mil milhões de euros) o que, nas contas do banco, corresponde a mais de metade do seu mais recente aumento de capital.
O problema é que todo este caso, passando no crivo da racionalidade de mercado, suscita várias interrogações. A primeira é: porque é que apenas o BCP avançou com este processo? No quadro da Associação Portuguesa de Bancos esteve em discussão a hipótese de as instituições financeiras avançarem em conjunto contra esta parte do acordo de venda. No mundo abstracto essa seria a actuação mais racional: em conjunto oporem-se a pagar também a venda do Novo Banco. Mas não se chegou a consenso.
Porque não houve acordo se praticamente todo os bancos do sistema se opõem ao modelo de venda? Uma das queixas reiteradas dos bancos é que pagam a conta sem terem, sequer, informação sobre o que se está a passar e ainda menos dados para avaliarem como estão avaliados os tais activos que, se forem vendidos com perdas, irão parar às costas dos seus accionistas. A hipótese que ainda lhes resta é participarem no processo de venda desses activos, uma vez que o modelo ainda não está decidido.
Em relação à resolução do BES pode admitir-se que os bancos pagaram o preço da sua estabilidade – a falência do banco liderado por Ricardo Salgado teria custos nos outros bancos que, podemos admitir, seriam superiores às responsabilidades que assumiram. Já relativamente ao acordo de venda é discutível que os concorrentes do Novo Banco tenham alguma coisa a ganhar. Daí que se perceba a sua oposição mais veemente agora.
Mas ninguém teve coragem ou interesse. Compreende-se que os que têm capital espanhol, como o Santander e o BPI/La Caixa, tenham concluído que o que arriscam pagar é muito inferior aos custos que teriam por indispor o Governo e o Banco de Portugal. O La Caixa conseguiu resolver o imbróglio, que tinha no BPI com Isabel dos Santos, graças ao governo de António Costa. E o Santander fez há pouco tempo um acordo com o Governo no caso do processo dos swaps – mantendo os contratos que tinha vivos e emprestando dinheiro ao Estado. Há depois a CGD que como banco público não ia entrar em conflito com o seu accionista. Resta o BCP, com accionistas menos dependentes da boa vontade do Governo e, especialmente, com menos dinheiro ou menos vontade de continuar a meter capital no banco português que mais valor destruiu.
Por aqui se percebe que o mercado livre é afinal um mercado bastante condicionado, em que as trocas intangíveis condicionam as estratégias mais racionais. Que, neste caso, levando estritamente em conta o interesse dos accionistas, seria oporem-se ao acordo de venda do Novo Banco que oferece ao fundo Lone Star garantias de que não corre riscos praticamente nenhuns.
Restou pois o BCP, o único que pareceu ter a coragem de enfrentar o Governo e o Banco de Portugal. O problema está quando olhamos para o que as partes – BCP e Banco de Portugal – dizem ser o efeito desse processo judicial na venda do Novo Banco: nenhum. Ou seja, tudo vai continuar a decorrer normalmente, conforme previsto nos calendários (agora estamos na fase da reestruturação da dívida obrigacionista). Para que serve então a acção administrativa?
Já percebemos que o BCP não quer parar a venda, quer apenas proteger-se de perdas futuras. Mas se está a questionar a legalidade da garantia dada pelo Fundo de Resolução, considerando que o Banco de Portugal está a reabrir um processo de resolução que disse ter encerrado, é difícil, para um leigo, perceber como é que isso não põe em causa a venda. Teoricamente essa cláusula do contrato – a da garantia – seria nula. Mas não é esse o entendimento do BCP e do Banco de Portugal, que também garantiu que o processo de venda se mantém. Mas o entendimento válido é o do tribunal, dir-se-á. Claro que sim mas, quando o tribunal disser o que entende, já a venda do Novo Banco estará concretizada.
Resta a pergunta: para que serve então este processo do BCP? Aparentemente para garantir que será indemnizado se as tais perdas acontecerem e assim criar um incentivo adicional para o Fundo de Resolução vender bem esses tais activos. É pouco para tanto barulho. Basicamente o BCP está a dizer-nos que deu um “murrinho” na mesa, seguindo a estratégia do possível e evitando, também ele, pôr em causa o generoso acordo de venda do Novo Banco ao Lone Star.
Resumindo e concluindo, todos já percebemos onde vai parar o custo de salvar os depositantes do BES: aos contribuintes. Como sempre se preconizou desde o dia de Agosto de 2014 quando se aplicou a resolução. Que nasceu torta e está com dificuldade em endireitar-se.
Há uma outra conclusão que já podemos tirar de todo este processo: o modelo de resolução seguido no BES está morto e enterrado. Ficou-se por Portugal e ameaçou ser uma “bomba atómica”, como logo na altura preconizaram os banqueiros, entre eles o presidente do BIG Carlos Rodrigues numa entrevista ao Expresso.
Basicamente, não se salvam grandes bancos transferindo o custo da sua salvação para os concorrentes. Porque se corre o risco de criar um problema em todos os bancos do sistema. Os únicos que conseguem pagar os grandes bancos são, infelizmente para nós, os contribuintes. Todos os bancos sabem isso. Daí que se possa dizer que, quer pelos favores que vão tendo dos governos, quer porque sabem que estarão salvos da conta do BES, ficam quietinhos a ver o Novo Banco a ser entregue ao Lone Star. Não precisam de fazer nada porque sabem que a prazo a conta irá parar ao bolso de quem paga o seus impostos, com muito ilusionismo e opacidade.
É por isso que o acto de coragem do BCP pode ser afinal uma táctica política para mostrar aos analistas e aos accionistas. Mas que mesmo assim merece ser elogiada. Porque era isso que todos deviam ter feito, em nome da concorrência, em nome de relações transparentes e de mercado com os governantes e supervisores. Em vez de aceitarem o caminho do “vai-se resolvendo”, sem que o cidadão comum dê conta que afinal pagou tudo.