Quem nasce num bairro social, pode aparentemente ter muitas desvantagens, mas também ganha coisas que não têm preço.

Não sei o que pensarão aí uns 99% dos portugueses de uma frase como esta, mas imagino: quem assim pensa só pode ser parvo.

Mas prossigamos, que estou a citar, não a inventar. “Quem vivia naquele meio podia ter dificuldades monetárias na sua família, como era o meu caso, podia não poder comprar os ténis de marca, (…) teria até de presenciar situações a que não é normal uma criança assistir (…), mas uma coisa era certa: para nós havia todo um mundo por explorar, montes de espaço para descobrir, mil aventuras à nossa espera, e estava tudo ali, à nossa porta”.

Estas recordações são de Telma Monteiro, o bairro social a que ela se refere é aquele em que cresceu – o Bairro Branco, no Monte da Caparica, um daqueles que os jornais costumam classificar como “problemático” – e as frases que citei estão no livro Na vida com garra, a autobiografia acabada de publicar da judoca portuguesa que conquistou uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.

Peguei neste livro – eu que nem consigo perceber quem ganhou ou quem perdeu um combate de judo… – com uma curiosidade e um objectivo: tentar perceber o que estava por trás do que Telma Monteiro disse aos jornalistas logo depois de vencer o seu combate decisivo: “Lutei com tudo o que tinha, mas acreditei que, se estava aqui, era para fazer história pelo meu país. Deus sabe tudo. Quando queremos, é na hora que nós queremos, é no dia que nós queremos”. Mais: “Digo isto a todas as crianças que me estão a ver: vale a pena lutarmos pelos nossos sonhos”.

O livro fala muito de judo mas fala também muito da menina que andava sozinha nos transportes entre a escola e o salão paroquial onde começou a treinar porque os pais – ele pintor de automóveis, ela cozinheira – não podiam levá-la de um lado para o outro, como fazem os pais da classe média; como fala igualmente da rapariga que não desistiu de estudar mesmo quando lhe complicaram a vida na universidade pública onde andava; ou da irmã com quem um dia, no regresso de uma prova, dividiu num aeroporto “um Toblerone daqueles pequenos” porque era só para isso que dava o euro que tinham no bolso, vendo os colegas da selecção “ir comer a algum lado”; e, claro, revela-nos a atleta permanentemente obcecada com ser a melhor e tudo o que pode apaixonar no judo. Para além disso fala muito, e muitas vezes, de uma ideia que Tema Monteira está sempre a repetir (como na entrevista que deu à SIC): a vida não é determinada pelo sítio de onde viemos.

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O seu caso e o seu exemplo não são únicos. A medalha de ouro da categoria -57 kg em que ela foi bronze, a brasileira Rafaela Silva, nasceu num bairro ainda mais difícil – a favela Cidade de Deus, imortalizado no filme de Fernando Meirelles – e teve palavras não muito diferentes das de Telma no final da sua prova. Ela, que para mais ainda teve de enfrentar o racismo, foi muito clara: “Mostrei que uma pessoa saída de favela pode tornar-se campeã. A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, que batalhem. Assim, podem alcançá-lo”.

Mas voltemos a Telma, e à sua “garra”, que disse ser a dos portugueses. Ela que também achou que foi o “sangue lusitano” que a alimentou até à vitória. Será mesmo assim? Será mesmo a “garra” o que define os portugueses?

Confesso que a mesma questão se me colocara um mês antes, quando ouvi o melhor jogador da selecção na final de Paris, Pepe, dizer que a vitória que estávamos todos a celebrar fora “uma vitória de pura humildade, pois representamos o povo português, que é isto: humildade, trabalho e superação”. Já então a mesma dúvida: será mesmo?

Histórias de superação, como as de Telma, ou de Pepe (que veio também ele de um bairro social da cidade brasileira de Maceió), ou de Ronaldo, ou de Eusébio, ou de tantos outros, até podemos dizer que, no desporto, são bastante comuns. São sempre histórias de muito trabalho, muita determinação e muito esforço, pois só assim se obtêm resultados (nunca me hei-de esquecer de ouvir o saudoso Moniz Pereira comentar que começávamos por conseguir bons resultados nas provas de fundo, pois aí ninguém duvidava que se tinha de treinar muito, mas do que nas disciplinas mais técnicas do atletismo nesse tempo se confiava demasiado no talento e “se trabalhava pouco”, e por isso os resultados não apareciam).

Mas passar destas histórias para o “povo português” fez-me pensar. Merece o povo a mesma honra e distinção? O nosso Presidente da República terá mesmo razão quando diz, como disse no último 10 de Junho, que “foi o povo, a arraia miúda, quem nos momentos de crise, soube compreender os sacrifícios e privações em favor de um futuro mais digno e mais justo”? Mais: “O povo, sempre o povo, a lutar por Portugal. Mesmo quando algumas elites – ou melhor, as que como tal se julgavam – nos falharam, em troca de prebendas vantajosas, de títulos pomposos, meros ouropéis luzidios, de autocontemplações deslumbradas ou simplesmente tiveram medo de ver a realidade e de decidir com visão e sem preconceitos”.

Creio que Marcelo tem razão quanto às elites: elas têm-nos falhado quase sempre. Ainda agora, durante o doloroso processo de ajustamento, foram as elites as que mais se queixaram, bem mais do que um povo que, apesar de tudo, cerrou os dentes e, em tantas e tantas situações, acabou a “dar a volta por cima”. O problema, porém, é mais fundo e mais complexo, pois as elites corrompem, os maus exemplos desanimam (sobretudo quando vêm de cima), e os choradinhos são contagiosos. A humildade de que falava o Pepe – e que a selecção tão bem encarnou naquele jogo inesquecível – não escasseia apenas nos salões mais refinados. Tal como a capacidade de superação está longe de ser a qualidade mais apreciada num país que parece mais obcecado com a igualdade na mediocridade ou no assim-assim.

Nestas alturas lembro-me sempre de Alexandre O’Neil que, num maravilhoso pequeno texto introdutório a um livro de 1983, de autores americanos, sobre o nosso país – Portugal –, nota que, entre os portugueses, uma das frases mais vezes repetida é “a culpa não foi minha”. Se pensarmos bem, nunca é. Ora são as circunstâncias, a falta de sorte, o mau tempo, o bom tempo, o chefe, os colegas, o árbitro, quase sempre o Governo, mais recentemente os mercados ou a União Europeia. Um português que se preze, nota o poeta, nunca é responsável pelo que corre mal ou apenas menos bem. Talvez por isso mesmo O’Neill tivesse a relação complicada que tinha com o seu país, que tão bem expressou quando escreveu “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém/ (…) feira cabisbaixa / meu remorso / meu remorso de todos nós…”

Pois é. Tendo a crer que, três décadas passadas, não mudámos muito. Telma, e regresso à sua autobiografia, escreve que “atribuir a culpa do nosso insucesso a outros guia-nos ao próximo fracasso”. Se ela o tivesse feito, há muito que teria desistido, pois não pode vencer sempre e cometeu muitos erros. Mas sabemos que não desistiu, e estas palavras valem tanto mais quanto é verdade que quando acabava de escrever o seu livro estava também a recuperar de mais uma operação ao joelho e o que tinha por mais incerto era conseguir regressar ao topo a tempo dos Jogos Olímpicos. Conseguiu, para bem dela e de nós todos.

Mas nós todos é que não somos assim. Passamos mesmo a vida a fazer o contrário do que ela aconselha. A crise do país não foi culpa do nosso governo de então, foi da crise internacional – disse-se isso na altura e continua-se a repetir hoje. A crise do endividamento privado não resultou de decisões de quem quis comprar aquilo para que não tinha dinheiro, mas apenas produto dos maliciosos bancos, que andaram a atazanar as pessoas.

O crescimento que nos prometeram não regressou, mas já estamos a ouvir as desculpas: a culpa é do governo anterior, pois o abrandamento vinha detrás; ou então a culpa é de Bruxelas, que obrigou a mudar o orçamento; ou ainda a culpa é dos juros baixos (como podia ser dos juros altos) ou do petróleo barato (como podia ser do petróleo caro).

A nossa floresta voltou a arder? A culpa é de quem não limpa as matas, como antes foi dos madeireiros, ou dos reaccionários, ou das celuloses, ou da falta de meios. Nunca é de quem podia ter mudado as políticas há dez anos e não o fez.

Temos sempre um motivo para choramingar. Há mais turistas e centenas de obras de reabilitação nas cidades históricas? Ai meu deus que os alugueres estão a ficar caros. Há empresas que inovam, da Uber aos rapazes dos tuk-tuk? Aqui del-rei que o negócio dos taxistas está pelas ruas da amargura. Os exames nos vários graus de ensino revelam debilidades que não gostamos de ver? Acabe-se com os exames, não fiquem as criancinhas traumatizadas.

Podia multiplicar os exemplos, mas acho que Alexandre O’Neill não se sentiria mais confortável no Portugal de 2016 do que se sentia no Portugal de 1983. A verdade, a dolorosa verdade, é que a cultura dominante neste país, o discurso que está sempre a encher as televisões e a tomar conta das ruas nas manifestações, é o da eterna choraminguice. Não é o discurso da Telma nem a atitude em campo do Pepe. É pena mas é assim.