O político é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é verdade
A verdade que o é simplesmente.*
António Costa (primeiro-ministro de Portugal) disse há poucos dias o seguinte: “A ilusão de que é possível tudo para todos, já não existe isso. Temos de negociar com bom senso, com responsabilidade, procurando responder às ansiedades das pessoas, mas com um princípio fundamental: Portugal não pode sacrificar tudo o que conseguiu do ponto de vista da estabilidade financeira, porque isso, no futuro, colocaria em causa o que foi até agora conquistado“.
Não satisfeito, o mesmo (tudo indica) António Costa acrescentou isto: “Todos estes objectivos devem ser cumpridos para aumentar a capacidade de o país investir onde é necessário. Se queremos investir mais na qualidade da educação, na qualidade do sistema de saúde e nos serviços públicos não podemos consumir todos os recursos disponíveis com quem trabalha no Estado“.
Estas declarações, surpreendentes na sua clarividência, proferidas durante a visita do Primeiro-ministro à Tunísia, merecem-me três comentários:
Primeiro: o chefe do Governo sabe que o discurso de repor e reverter e reverter e repor não pode ser mantido e sustentado continuamente pelo Executivo, com as mesmas feições populistas do Bloco e do PCP (e que até certo ponto o PS fomentou e alimentou), mas tem, pelo contrário, que acomodar as exigências do que a economia pode suportar. Não é uma questão de mudar o discurso, mas de planear o futuro de forma responsável — os ganhos da economia têm que ser colocados ao serviço do desenvolvimento do país, repondo rendimentos onde for possível e sustentável, mas não para satisfação das reivindicações de grupos de pressão mais ou menos organizados.
Segundo: António Costa tem a consciência plena de que o Estado necessita de investir nos mecanismos de desenvolvimento do país, apostando seriamente na educação, na ciência, na requalificação dos cidadãos, na modernização da economia, na inovação, etc. É para ele uma evidência, pois, que são imprescindíveis recursos para acorrer a essas necessidades e isso supõe uma ponderação rigorosa a respeito da alocação da riqueza que é possível mobilizar em consequência da recuperação económica.
Em terceiro lugar, é claro que o primeiro-ministro quis recordar, e sublinhar a traço grosso, que o Estado tem obrigações para com todos os cidadãos, e não apenas perante aqueles que trabalham no sector público ou face aos que gozam de maior capacidade de reivindicação, de mais sofisticação organizativa ou de um acesso mais fácil e imediato à comunicação social. Trata-se de uma constatação óbvia, mas há momentos em que é imprescindível reiterar o óbvio.
Por causa de tudo isto não é evidente quem terá proferido as seguintes palavras (atribuídas ao mesmo António Costa): “um princípio fundamental é a consolidação das finanças públicas, a eliminação do défice e a redução da dívida para desonerar a economia e as finanças públicas portuguesas“. Não é evidente também que a citação inicial deste texto se reporte àquele autor em concreto, sobretudo depois de Mário Nogueira negociar na rua e triunfar com cartazes e palavras de ordem.
Já nem é evidente qual é o António Costa que se apresenta perante nós — se o político-malabarista, preocupado com tudo e que tudo negoceia e tudo transige; se o político-champanhe, preocupado com nada e que desaparece depois do estrépito da rolha e do glamour da espuma.
O político é um fingidor. E neste caso poderá dizer o povo que já nem na verdade acredita: “Com a verdade me enganas”
*Peço desculpa a Fernando Pessoa por utilizar o brilhantismo das suas palavras em algo tão prosaico.
P.S. – Este texto já estava escrito e até enviado ao Observador quando fui confrontado com a partida de Belmiro de Azevedo. Homem maior em Portugal e Homem maior na minha vida pessoal. Homem para quem a verdade nunca precisou de ser fingida.