Augusto Santos Silva é um político experiente que raramente se atrapalha ou engasga. E é também suficientemente inteligente para não entrar em contradição na mesma frase. Mas não foi esse Augusto Santos Silva que se apresentou perante os jornalistas para defender que a ida de três secretários de Estado ao Europeu de Futebol era um “caso encerrado”.
Não tenho por hábito sugerir ou pedir a demissão de membros do Governo, pois entendo que, em democracia, os eleitores têm sempre a possibilidade de julgarem quem exerce o poder no momento e no local adequado. Não é hoje que vou quebrar esse hábito, mas não posso deixar de analisar as palavras do ministro (que ali representou o primeiro-ministro) na defesa destes membros do seu Gabinete. Olhemos pois para os seus argumentos:
“É necessário contextualizar o que se passou. Não se trata de uma relação entre a) e b) a propósito de c).”
O que Augusto Santos Silva nos está a dizer é que os secretários de Estados não foram convidados pela Galp com o propósito específico de obter uma qualquer vantagem. De facto seria demasiado descarado que assim fosse. E também não é assim que as coisas se passam. As “gentilezas” ou as “cortesias” de empresas como a Galp, que tanto podem dirigir-se a políticos como a jornalistas – e por isso sei do que falo, mesmo que esteja a falar em termos genéricos e não da Galp em particular – não visam, por regra, uma vantagem imediata e directa. O jogo é mais subtil. É o de criar proximidades e cumplicidades. É o de “olear” canais de comunicação. É o de conseguir, no mínimo, uma atenção especial aos argumentos e interesses dessas companhias. Estas “gentilezas” e “cortesias” não corrompem necessariamente, nem é isso que se argumenta ou insinua, mas podem condicionar ou limitar a liberdade de decidir do agente politico (ou de escrever, quando se trata de um jornalista). Fingir que não se entende isto é fazer de todos nós parvos.
Os convites corresponderam apenas a “uma iniciativa de mobilização de apoio público que não é a primeira vez que sucede e que mobilizou dezenas e dezenas de personalidades públicas da vida portuguesa, entre os quais vários titulares de cargos públicos e três membros do Governo”.
Vamos lá ver se percebi bem: estes membros do Governo foram ver os jogos da selecção não porque isso fosse do seu agrado, mas por isso corresponder à nobre missão de mobilizar a opinião pública portuguesa para o apoio à selecção nacional. Vamos supor que era necessária essa mobilização – algo que quem viveu as semanas do Europeu, viu as praças cheias e assistiu a algumas das reportagens que enchiam todos os noticiários sabe que era de todo redundante – e que era realmente essa a intenção da Galp, mesmo quando encheu os aviões com clientes que ninguém conhece fora dos seus círculos profissionais. Nesse caso, pergunta-se: porquê então convidar estes, e logo estes, secretários de Estado, sendo que dois deles, o da Indústria e o dos Assuntos Fiscais, tomam decisões que podem condicionar interesses da petrolífera? Porquê levar duas vezes o secretário de Estado que tem a pasta dos Assuntos Fiscais quando a Galp tem um litígio de 100 milhões de euros que passa precisamente por organismos por ele tutelados? Porque não outros membros do Governo, porventura mais conhecidos e mais populares? E, já agora, se o objectivo era mobilizar o apoio público, porque é que essas viagens não foram publicitadas, servindo aí sim para “galvanizar” ainda mais as multidões que se enrolavam em bandeiras nacionais em todas as praças do país? Não faz qualquer sentido e, desta vez, Augusto Santos Silva não está apenas a tomar-nos por tolos, está a tentar atirar-nos areia para os olhos.
O caso fica “encerrado” porque, mesmo existindo uma “proibição geral de aceitação de ofertas”, os “gestos de cortesia são aceitáveis por razões que têm a ver com usos e costumes e adequação social”.
Este ponto começa por ser curioso pelo cuidado colocado nesta formulação, pois ela visa, antes do mais, enquadrar o gesto dos três secretários de Estado no regime que permite a recepção de ofertas de valor significativo (e estamos a falar de mais de dois mil euros num dos casos) na exacta fórmula jurídica que possibilita que eles não configurem a prática de um crime. Nesse momento o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, mesmo sendo sociólogo, vestiu a pela do advogado de defesa. O pior é que não se percebe bem como é que uma norma desenhada para permitir a troca de presentes entre Chefes de Estado, por exemplo, possa enquadrar a ida a um jogo de futebol. “Usos e costumes”? Julgo que a maioria dos portugueses desconhecia a existência deste tipo de tradição. “Adequação social”? A que propósito?
O Conselho de Ministros vai acelerar a aprovação de um código de conduta para membros do Governo e altos dirigentes da Administração Pública tutelada pelo Governo para “densificar a norma que está na lei de forma a que ela se torne taxativa”.
Esta passagem da conferência de imprensa é muito misteriosa, até porque Augusto Santos Silva se recusou a especificar detalhes. Há duas interpretações possíveis. A primeira é surrealista: lá para o fim do Verão teremos um código de conduta “densificado” onde se estabelecerá que idas a jogos de futebol passarão a fazer parte dos nossos “usos e costumes”. Não creio que isso suceda. A outra interpretação é que vamos estar perante uma desautorização à posteriori do comportamento dos secretários de Estado. Por outras palavras: no futuro vamos colocar preto no branco que isto não se pode fazer, mas agora, enfim, preferimos fingir que nada se passa. Eu diria que há formas mais elegantes de tirar o tapete político a colegas de Governo.
Sobre o reembolso assumido pelos governantes, mesmo que o Governo entenda que não há violação da lei, Santos Silva diz que aconteceu porque o pagamento das despesas “dissipa quaisquer dúvidas”.
Se não houve violação da lei, porquê o pagamento? Então não foi este mesmo Governo que acabou de decidir devolver ao Presidente da República o cheque com que este quis pagar um voo de Falcon para ir assistir a um dos jogos da selecção? Nesse caso não havia qualquer dúvida, não era para pagar, e agora é necessário “dissipar dúvidas”? A leitura é clara: se, por um lado, o ministro tentou proteger os secretários de Estado com a leitura que fez do Código Penal, ao elogiar o pagamento e ao anunciar o código de conduta está a dizer-nos que, eticamente, o que eles fizeram levanta “dúvidas”. E que daqui por umas semanas até vai deixar de ser “ético”. Ou seja, enterrou-os ainda mais.
Sendo estes os pontos centrais da comunicação de Augusto Santos Silva, não restarão muitas dúvidas que meteu os pés pelas mãos e acabou a deixar em maus lençóis os secretários de Estado que caíram na tentação da Galp. Ainda piores lençóis do que aqueles onde eles já se tinham enfiado, especialmente Fernando Rocha Andrade, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Como já escrevi inúmeras vezes (a última, que me recorde, a propósito de Maria Luís Albuquerque), em política, no poder e tempos difíceis, ainda é mais verdadeira outra velha máxima: à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria. Rocha Andrade pode dar as voltas que quiser, que da má impressão não se livra, o que significa que, politicamente, fira ferido e diminuído.
Depois, não estamos perante um secretário de Estado qualquer: estamos perante o responsável dos Assuntos Fiscais, o mesmo que enviou fiscais de “pé na areia” para o Algarve para fiscalizarem as faturas das bolas de Berlim, o tal que acaba de imaginar as alterações ao IMI que nos farão pagar pelo sol e pelas vistas (a propósito: de antologia o texto em que Helena Garrido explica o tipo de comportamentos perversos que uma lei destas induz), o mesmo que tutela o organismo que disputa em tribunal com a Galp um pagamento (em falta) de 100 milhões de euros.
Perguntar-se-á: de que servirá esta espécie de morto-vivo político a António Costa daqui por diante? Ser-lhe-á porventura mais útil do que o ministro que caiu por causa de um post no Facebook? Duvido. Mas também sei que na política há amizades e fidelidades que por vezes escapam à compreensão do comum dos mortais. Mas aquilo que não lhes escapa é que quem não se dá ao respeito, perde o respeito. E, como sabemos, isso degrada a própria democracia — um tema que ficará para outra crónica.
PS1. Depois deste artigo escrito adensaram-se, ou confirmaram-se mesmo, as suspeitas de que deputados do PSD também aceitaram convites ou da Galp, ou de uma outra empresa (sendo que aqui houve um desmentido algo tardio). Não tendo as mesmas responsabilidades dos membros do governo envolvidos, faltou-lhes bom e, nalguns casos, sobrou-lhes descaramento. Mais um mau exemplo.
PS2. Soubemos hoje que, afinal, já existe um código de conduta para os trabalhadores do fisco. Irá o código de conduta do Governo ser mais liberal? É que se Rocha Andrade tivesse seguido as normas a que estão obrigados os seus subordinados, não teria aceite o convite. Em síntese: Código Penal, Código do Processo Administrativo, código de conduta das Finanças, código de ética dos eleitos socialistas, que códigos mais terá o secretário de Estado arriscado a violar?
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