Não é que a comunicação social não costume embandeirar em arco de cada vez que o país, o governo ou o presidente da República marcam pontos, mas desta vez o coro é algo ensurdecedor. Só para dar alguns exemplos, Nicolau Santos envia-nos um Expresso Curto de «um país cada vez mais feliz e em estado de graça: o Papa visitou-nos, santificou dois pastorinhos, o Benfica foi tetracampeão [e] Salvador Sobral ganhou o Festival da Eurovisão». Entretanto, Tiago Freire (Negócios) fala – nada mais, nada menos – d’ «O esplendor de Portugal»! Será o regresso dos três FFF – Fátima, Futebol e Fado (neste caso Festival da Canção)? Se não é, parece!
Enquanto a «geringonça» vai empurrando com a barriga as finanças e a economia, outros problemas se acumulam no futuro próximo para não falar do distante, no sábado passado – não por acaso, 13 de Maio, centésimo aniversário do chamado milagre de Fátima – o país atingiu o pleno da felicidade com a vinda do Papa, a habitual vitória do Benfica e a menos habitual vitória num festival da canção. Tudo em directo na televisão. Os três FFF a que o regime de Salazar vivia agarrado mantêm-se, pois, bem vivos quase cinquenta anos depois da morte do ditador.
O país mudou bastante e para melhor; aderiu à União Europeia que tem servido de respaldo ao regime democrático e às finanças do país; sem ela, não se sabe onde já teríamos ido parar com três virtuais falências em menos de 40 anos; é verdade que Portugal está em crise há anos mas não perdeu o essencial das melhorias que vieram com o fim da ditadura. As hipérboles com que a comunicação social se encheu durante o fim de semana interpelam-nos, porém. Não estou a pensar em «complexos de inferioridade» que viriam ao de cima sempre que Portugal é comparado com o estrangeiro, pois não sou psicólogo e os cientistas sociais acreditam pouco em mitologias identitárias…
Estou a pensar, isso sim, num nível de instrução que, apesar da melhoria de que os governos não param de se gabar, continua não só a ser de longe o mais baixo da UE como não consegue diminuir a diferença que nos separa dos outros países europeus em anos de escolaridade média da população. E porque volto eu a este tema de que me tenho ocupado nos últimos anos? Porque o atraso absoluto e relativo da instrução tem efeitos em cadeia enormes que actuam a todos os níveis da nossa vida, desde a saúde até… às atitudes sociais em geral e, em particular, a atrasos civilizacionais tais como crendices, fezadas e cantos de galo!
Ora, o baixo nível de instrução tem efeitos não só ao nível dos conhecimentos e do acesso à informação, como é óbvio, mas também ao nível cognitivo, incluindo a compreensão do mundo e das relações sociais, afectando a confiança inter-pessoal que é em Portugal das mais baixas da Europa. Tudo isto ressalta muito claramente dos estudos internacionais, especialmente quando estudamos a população mais velha, dos 50 para cima, conforme acontece com o inquérito europeu SHARE, cuja análise comparativa publicámos no ano passado.
Pode parecer que estamos a afastar-nos do tema mas não. Pelo contrário. Aquilo que esta momentânea regressão aos arcaicos três FFF do tempo de Salazar mostra é que, apesar das mudanças que o país conheceu nas últimas décadas, o baixo nível de instrução que perdura em Portugal só pode amplificar o lastro da (in)cultura salazarenta que o país ainda transporta consigo. Afunilados hoje pela televisão e repetidos à exaustão horas e horas a fio, fenómenos de massa como aqueles de que estamos a falar só podem, evidentemente, saturar o entendimento das pessoas, as quais ou fecham os aparelhos ou ficam presas ao écran e mimetizam as mensagens estereotipadas, destituídas de qualquer reflexividade, dos canais de televisão.
Ontem à noite, pelas 22h, seis-canais generalistas-seis continuavam a passar pela enésima vez as imagens de felicidade dos adeptos do Benfica e mais de uma dúzia de comentadores repetiam à saciedade todas as banalidades que se dizem nessas alturas… Mudando de F, é bom não esquecer que são historicamente bem conhecidas as condições em que se deu há cem anos o «fenómeno de Fátima» e qual foi a sua evolução ao longo do tempo, bem como as consequências que teve no longo prazo, desde logo ao nível político. E se tudo já foi dito e redito a este propósito, tal não altera o impacto desta propaganda clerical – é assim que se designa nas ciências sociais – junto de uma boa parte do eleitorado português.
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Entretanto, lá fora, as notícias são mais viradas para o futuro do que para um passado brumoso: Macron ganhou as eleições presidenciais em França e garante fazer reformas a fundo ao mesmo tempo que a Senhora Merkel limpou as três últimas eleições regionais na Alemanha, derrotando o SPD no seu próprio terreno e prometendo, assim, ganhar as eleições legislativas em 24 de Setembro. Sortudo como é, o nosso governo poderá beneficiar das concessões que Macron vier porventura a arrancar à Sr.ª Merkel mas teria então de fazer também as reformas de que Portugal precisa urgentemente… Infelizmente, é pouco provável que uma «geringonça» como a nossa consiga fazer isso, mesmo com os três FFF a soprar a seu favor…