Órgãos de soberania, em Portugal, são o Presidente da República, o Governo, a Assembleia da República e os Tribunais. Titulares desses órgãos, e portanto representantes do Estado, são o mesmo Presidente da República, os ministros (incluindo o primeiro), os deputados e os juízes.

Todos eles são, escreveu lapidarmente Jorge Miranda, “o Estado a agir”. Quando o Estado age mal, os cidadãos podem não os reeleger (Presidente, Governo, Deputados) ou ser demitidos por outro dos órgãos, numa óptica política de equilíbrio de poderes (Governo, Parlamento).

Os juízes são inamovíveis. Sujeitos a um poder disciplinar que pode terminar em sanções –quase nunca a demissão -, a sua avaliação, da exclusiva responsabilidade do Conselho Superior da Magistratura, tem vindo a mudar; dantes, contavam apenas as falhas e atrasos nos processos, hoje em dia são também avaliados pelo adiamento sem aviso de julgamentos, a postura em tribunal e a pontualidade. Mas nunca podem ser responsabilizados pelo conteúdo das decisões que tomam, determina a Constituição no artigo 216º. Ainda bem que assim é, aliás, garantindo a independência dos tribunais, pedra basilar da democracia. Significa isso que os juízes não podem ser censurados pelas decisões que tomam? Não creio, pelo contrário.

Vem isto a propósito das decisões recentemente conhecidas, uma em particular, mais próprias de um anedotário (de mau gosto, aliás) do que de uma sala de tribunal. Vieram a público e ainda bem que vieram. A transparência e a justiça são duas faces da mesma moeda, ou deviam ser. Até porque o que agora se passou não é original. Recordo o episódio de há 28 anos, quando o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o violador de duas jovens turistas perto de Faro tinha atenuantes, porque, e cito:

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“(…) a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la”.

Subscrito pelos quatro juízes do colectivo do STJ, o acórdão ainda hoje é citado como exemplo da estupidez (com a devida vénia, claro) que até órgãos de soberania podem produzir. Claro que o “macho latino”, ao conhecer essa decisão – logo do Supremo -, poderia ter-se sentido encorajado à predação na sua coutada; felizmente, a espécie está em vias de extinção.

Mas isso foi há 30 anos. Tudo mudou. Será? Sugiro que reflictamos sobre o acórdão agora conhecido da Relação do Porto, que suscitou clamor social e condenação da opinião pública.

Trata-se de um triângulo amoroso clássico, que desta forma, infelizmente, se fez público. Ficou provado: A enganou o marido B com C; deixa este e separa-se de B. B e C perseguem A, vigiam-na e insultam-na (o então marido, com quem tem uma filha menor, escreveu-lhe nomeadamente que – e deixo de lado as obscenidades – “o teu lugar não é aqui é junto do teu pai (falecido); vou-te tirar a casa e no fim mato-te; tenho uma lista de pessoas aquém – sic – vou limpar o sebo, em primeiro lugar a ti e és uma mulher morta); C sequestra A e chama B, que armado de uma moca a agride com violência. Os ferimentos estão descritos com pormenor no acórdão. Podia ter morrido? Podia.

Para além do dano físico, o Tribunal da Relação do Porto deu como provado que a ofendida foi humilhada, ferida na sua honra, viveu perturbada, nervosa, com dificuldade em dormir, passou a ter um comportamento triste e introvertido, isolando-se socialmente. Mas o Tribunal, o “Estado a agir”, também acha, com extrema sensibilidade e inteligência, o seguinte:

Que o arguido B (o agressor) tinha uma depressão (causado pelo abandono da mulher), razão para ter demorado 4 meses… a agir. Que não ficou provado que dissesse à filha domingos a fio, repetidamente, “durante a semana fui várias vezes ao salão da tua mãe para a matar, a sorte dela era não estar lá “, mas apenas “que lhe apetecia matar a mãe e matar-se de seguida”, o que é bem diferente (!), diz o “Estado a agir”, não eu. Que o caso não tem a gravidade habitual dos casos de violência doméstica. Que o arguido agiu num contexto de adultério da mulher, o qual (só o da mulher?) é um grave atentado à honra e dignidade do homem; e dá exemplos de grande interesse para a vida portuguesa, sobre as sociedades que lapidam a mulher adúltera, para além de invocar a Bíblia, a qual diz, segundo o “Estado a agir”, que a mulher adúltera deve ser punida com a morte (pena só terem lido o Antigo Testamento, recomendo-lhes a leitura da parábola da mulher adúltera de João – “aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”). E o “Estado em acção”, saudoso, evoca ainda o código penal de 1886, que punia com penas simbólicas o homem que matasse a sua mulher, encontrada em adultério.

O adultério da mulher, dizem os magistrados (e não apenas o juiz relator), é “uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente”, a começar pelas mulheres honestas (hã?)! E por isso, simpatia de juiz, se vê “com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” (hem?). E a mulher batida, na voz forte do Estado, na sua “imoralidade sexual” (hã?), fez o agressor “cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão” (hem?).

O Estado, nas suas múltiplas representações, deve ser uma pessoa de bem. E quando exerce o poder que os cidadãos lhe outorgam pela via constitucional, fá-lo em defesa e interesse deles. O Estado não pode inventar, nem injustiçar, nem dizer disparates. Com o enorme respeito que tenho pelo poder judicial, o “Estado a agir” não pode defender enormidades destas. Não preconizo, por óbvias razões, que os juízes passem a ser responsabilizados criminal ou civilmente pelas suas decisões, o que seria o primeiro passo para o fim da independência do judicial, que tem de passar pela liberdade de julgar e decidir.

Mas algo tem de mudar: melhor formação, mais responsabilização inter pares, ligação à Universidade, desqualificação dos juízes responsáveis por decisões absurdas e fundamentações insensatas. Os cidadãos devem poder confiar na justiça.

Na coutada do macho ibérico, sobrevivem alguns exemplares.