Só entravam nele passageiros, jovens bem bonitos e solteiros
Logo a seguir noutra paragem, entrou uma moça na viagem
Olhando para todos perguntou, que carro é este em que eu vou?
É o autocarro do amor, logo respondeu o revisor
O Autocarro do Amor (Os Taras e Montenegro, 1969)

Uma candidata à câmara de Lisboa propôs a segregação de “géneros” no metro local e, sem cedência a falsos pudores ou à hipocrisia, destapou um dos maiores dramas nacionais: o abuso sexual das mulheres nos transportes públicos, pelo menos nos da capital. Corajosa, Joana Amaral Dias não hesita em imitar métodos usados, para fins raciais, na África do Sul do apartheid ou no Alabama de 1950. Democrata, Joana Amaral Dias concede que a utilização dos lugares “protegidos” seja facultativa – as senhoras sérias escolhem-nos; as galdérias, se assim quiserem, permanecem na zona da pouca-vergonha.

Naturalmente, um assunto desta gravidade não podia ficar por aqui, para cúmulo quando a gravidade raia o inominável. A polémica, como é típico das polémicas, instalou-se. E, de acordo ou em desacordo com a segregação, os testemunhos pungentes sucederam-se. Nas “redes sociais”, uma arguta jornalista de investigação, célebre por ter namorado com um trapaceiro sem suspeitar de nada, escreveu: “quero q (sic) as miúdas (sic) d (sic) 11 possam andar na rua sem lhes pedirem broches. não (sic) quero q (sic) andem em autocarros so (sic) p (sic) meninas. quero (sic) q (sic – tenham paciência) a lei as proteja”. Em resposta a este apelo angustiado, outra alegada jornalista, filha do presidente da Assembleia da República (juro), acrescentou: “Quero que andem de autocarro sem receio de que um gajo qualquer se encoste a elas para se vir entre uma paragem e outra.”

Embora não penetre (vade retro) um autocarro desde 1989, não me passa pela cabeça duvidar de gente séria. Parece-me evidente que alguma coisa medonha acontece na Carris e similares, cujos veículos estão aparentemente repletos de exibicionistas apreciadores de fellatio e ejaculadores precoces. Não me parece evidente a maneira de as referidas jornalistas chegarem a informação tão detalhada. Sugiro duas hipóteses. A primeira é o recurso a fontes qualificadas: as senhoras nunca entram em autocarros, mas convivem diária e proximamente com depravados que o fazem com propósitos sórdidos e, desculpem o jargão científico, heterobadalhocos. A segunda hipótese é a observação directa: as senhoras frequentam os ditos autocarros e são, elas próprias, alvo dos pervertidos agora denunciados. Em qualquer dos casos, as senhoras deviam rever o rumo das respectivas vidas. Em qualquer dos casos, os poderes políticos deviam actuar com a pressa e o vigor adequados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Falo, evidentemente, da abolição dos transportes públicos. Mesmo sem a presença de maluquinhos desejosos de repetir as proezas do filme erótico da CMTV da noite anterior, viajar encostado a resmas de desconhecidos é actividade assaz desagradável e avessa a uma existência sadia. Na presença dos maluquinhos, então, torna-se uma aventura de alto risco, que urge erradicar. Por mim, sempre desconfiei que o lóbi dos transportes públicos, que berra há décadas contra o bom e velho automóvel, era coisa de tarados. Não imaginava que o fosse literalmente.

Perante isto, é ainda mais assustadora a simpatia que o citado lóbi colhe junto de governos, autarquias, energias “renováveis” e activistas “verdes” ou maduros. Se já deprimia o empenho fiscal e legislativo e policial com que se tenta demover os cidadãos de viajar na propriedade privada e na privacidade devida, é grotesco que semelhante empenho esteja, afinal, ao serviço de líbidos desarranjadas. Felizmente, à revelia da propaganda que procura “vender” os transportes públicos a título de amigos do ambiente ou de amigos da circulação urbana, há jornalistas sem medo de os denunciar como os amigos do deboche que de facto são.

Convém mostrar-lhes que não estão sozinhas. De hoje em diante, sentarmo-nos ao volante do nosso carro deixará de ser um simples pormenor quotidiano. Será, sobretudo, um gesto de solidariedade para com as mulheres assediadas e de resistência aos vastos interesses do assédio, desses que se movem na sombra ou debaixo da gabardina. No sossego do Audi ou do Fiat, os únicos tarados – ou, em prol da igualdade, taradas – são aqueles que convidamos. E as únicas vítimas são as que pagam impostos.

Notas de rodapé

1. Não me aborrece viver num país cujos governantes abandonam entrevistas à primeira pergunta “incómoda”, como agora aconteceu com o sr. Costa na Rádio Renascença. Mas é triste viver num país cujos jornalistas ainda comparecem a entrevistas com espécimes assim. Refiro-me, claro, aos jornalistas que mantêm uma réstia de vergonha. Os restantes cumprem exacta e escrupulosamente o papel deles.

2. A propósito da “polémica” dos livrinhos de exercícios “para o menino” e “para a menina”, recentemente aberta por analfabetos funcionais, o gabinete de comunicação da Porto Editora enviou-me um e-mail a esclarecer que os ditos livrinhos voltaram às livrarias, “no quadro”, cito, “do exercício pleno da liberdade de expressão da autora e das ilustradoras, bem como da liberdade de edição, respeitando estes valores fundamentais numa sociedade livre e democrática”. Fica a nota, o aplauso à Porto Editora e a suspeita de que a referência à sociedade livre e democrática é força de expressão. Nem tudo está bem quando acaba bem, sobretudo se começa demasiado mal.