Para perceber o que está verdadeiramente em causa na lei de financiamento dos partidos, é preciso recuar no tempo, até 1975 e à Assembleia Constituinte. Portugal não esteve parado desde então. A sociedade portuguesa mudou provavelmente mais do que em qualquer outro momento da sua história. Mas na Assembleia da República, é como se o ano fosse eternamente 1975. Com uns deputados a mais ou a menos, os mesmos partidos permanecem nos mesmos lugares, com o BE como herdeiro da velha UDP e os Verdes como novo MDP-CDE. Poucas assembleias representativas europeias terão um ar tão retro. Até um velho Partido Comunista ainda lá está, indiferente à queda do muro de Berlim em 1989. É como se Portugal não fizesse parte da Europa que nos últimos anos viu emergir o En Marche de Macron, o Front National, o Podemos, os Ciudadanos, o Movimento 5 Stelle, a AfD, o Syriza ou o Labour Party de Jeremy Corbyn.

A razão pela qual os partidos portugueses parecem invulneráveis a tudo – crise do Euro, acusação a José Sócrates, revolta contra a globalização, etc. — não é misteriosa. Em 1974, havia um grande medo da democracia. Ninguém sabia o que os portugueses iriam escolher em eleições livres, nem como os eleitos se iriam comportar. Daí, um sistema, apoiado pelo MFA, que reservou o monopólio da representação política a um pequeno número de partidos, e que salvaguardou a hegemonia dos dirigentes dentro de cada partido. O modelo de financiamento público foi no mesmo sentido: tornou a actividade partidária fundamentalmente dependente do Estado e assegurou desse modo que dificilmente em Portugal apareceriam organizações políticas dotadas para desafiar os partidos pagos com o dinheiro dos impostos.

Os actuais partidos parlamentares transformaram-se assim em partidos dominantes sem nunca terem precisado de ser movimentos de massas, como os partidos sociais democratas ou democrata-cristãos da Europa ocidental. Em Portugal, os partidos tiveram sempre muito poucos militantes a pagar quotas em relação ao número de votantes, por comparação com os seus correligionários europeus. O Estado dispensou-os, em geral, do trabalho de inscrever cidadãos.

A elaboração discreta e anónima da última lei de financiamento é reveladora. Os líderes partidários não têm ilusões sobre a conta em que são tidos. Mesmo com a actual onda de prosperidade, menos de um quarto dos portugueses confia nos partidos. Mas ninguém espera que votem noutros. Em quarenta anos, a sociedade portuguesa nunca pareceu prestes a sair da camisa de forças partidária que o MFA lhe vestiu (uma breve excepção à regra, em 1985, foi propiciada pelo presidente da república). Portugal enriqueceu, mas uma grande parte da riqueza é hoje controlada por um Estado cuja despesa subiu de cerca de 25% para 50% do PIB. Ora, os partidos não se limitam a ser os gestores do Estado: são o próprio Estado, que funciona como o aviário dos seus dirigentes e clientelas. Eis porque as crises e os escândalos não geram Podemos nem Ciudadanos deste lado da fronteira. Os partidos são a prova de que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: não precisam da nossa militância, nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito. Que ainda assim tentem salvar as aparências, com leis escondidas no sapatinho de Natal, é quase comovedor.

O actual regime é uma mistura de democracia eleitoral e de autocracia partidária. Numa sociedade envelhecida, endividada e dependente do Estado, a alternativa aos partidos tem sido a abstenção: de 8,5% em 1975 para 44,1% em 2015. É muito fácil simular indignação nas redes sociais e exigir vetos ao presidente. É mais difícil saber se o regime em Portugal pode ser outra coisa.

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