14 de Outubro de 2016: “António Costa, primeiro-ministro, anunciou no debate quinzenal que o novo imposto sobre património vai ser consignado ao Fundo de Estabilização da Segurança Social”. Este é apenas mais um episódio no populismo que tem caracterizado as propostas do primeiro-ministro sobre a Segurança Social e o respectivo fundo.

Recordo que em Abril deste ano António Costa anunciou um investimento de 1400 milhões de euros na recuperação de património público e na aquisição, para reabilitação e arrendamento, de património privado. Donde viriam os 1400 milhões de euros para aquilo que o primeiro-ministro então definiu como “políticas públicas que favoreçam o acesso à habitação”? Precisamente do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, o tal que agora tem de ser reforçado com o novo imposto. Em Abril, o negócio parecia tão promissor que o primeiro-ministro até explicava que desse modo se alargavam as fontes de financiamento da Segurança Social (Desde o “Pois, pois J. Pimenta” que não se via um negócio assim! Como poderá a Segurança Social ganhar dinheiro com habitação social é uma questão que não parece preocupar Costa nem o ministro Vieira da Silva). Um mês depois, em Maio, os 1400 milhões de euros a investir tinham passado para 500 milhões. Agora, em Outubro, o mesmo primeiro-ministro volta a referir-se ao Fundo de Estabilização da Segurança Social. Desta vez, diz Costa, o fundo não investe. O fundo recebe. O quê? As verbas do novo imposto sobre o património. Simples, não é?

Durante anos os portugueses viveram na ilusão de que na Segurança Social havia uma espécie de conta onde mês a mês se acumulava o dinheiro que descontavam. Esse pecúlio, que visualizavam intocado, estava, acreditavam eles, à espera do momento em que o seu proprietário se reformasse. Aí operava-se uma espécie de milagre pois, apesar de cada um acreditar que a sua reforma seria paga com os seus descontos, nunca alguém se questionou como poderiam descontos mensais de um terço do ordenado custear e manter actualizadas, durante tantos anos quanto vivessem os respectivos pensionistas, reformas cujo valor mensal era o da média do ordenado nos últimos anos. Digamos que era uma versão das bodas de Caná mas sem Jesus e com os direitos adquiridos a ocuparem o lugar do milagre.

Avisar da perigosa ilusão subjacente a tudo isto valeu àqueles que o fizeram serem tratados como alarmistas ou representantes de interesses obscuros. Aliás, agora que a pátria vive em júbilo com Guterres, estamos certamente no momento adequado para recordarmos aquela que esteve para ser uma das mais importantes iniciativas do seu executivo: no início de Março de 1996, o Conselho de Ministros chefiado por António Guterres constituiu a Comissão do Livro Branco da Segurança Social, um grupo de reflexão que deveria apresentar propostas de reforma do sistema, cuja sustentabilidade se considerava estar em risco. Assim que começam a sair notícias sobre os trabalhos da Comissão percebeu‑se como ia ser difícil fazer passar a reforma: Correia de Campos, que presidia à referida comissão, passou de imediato a ser rotulado como “ultraliberal”. A discussão em torno da Segurança Social transformou‑se rapidamente num confronto maniqueísta em que os “bons” defendiam a imutabilidade do sistema e garantiam a sua sustentabilidade, desde que se combatesse a subdeclaração de rendimentos e se cobrassem as dívidas. Do outro lado estavam os “maus” ou seja aqueles que propunham alterações ao sistema, alterações essas logo apresentadas como manobras do “lobby das seguradoras” e do “lobby do plafonamento”. No final de 1997, com o abeirar das eleições autárquicas o então ministro Jorge Coelho afirmou “quando há eleições autárquicas, é preciso tirar conclusões”. E elas não tardaram a chegar. Os trabalhos da Comissão do Livro Branco resultaram num livro interessante mas nada mais. A reforma da Segurança Social não aconteceu.

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Daí em diante, temos tido arranjos de tesouraria e transferência para as gerações futuras dos encargos e dos cortes. Ou parafraseando Guterres, um pântano: a popularidade e o perfil de “sensibilidade social” conseguem-se reivindicando e atribuindo pensões e reformas que ignoram, para os actuais pensionistas, ou seja para os actuais eleitores, a verdade das carreiras contributivas. Em relação aos que ainda não se reformaram vale tudo. Mas mesmo tudo. Enquanto escrevia este texto chega a informação de que o complemento às pensões mínimas passará a ser sujeito a recurso. Ou seja os reformados que além de uma reforma muito baixa (estamos a falar de reformas que, sem complemento, podem ser de 150 euros) tenham outras fontes de rendimento como juros, rendas ou salários e património acima de um determinado patamar, passarão a ter uma pensão calculada apenas em função dos descontos que fizeram (o que, repito, sem complemento, pode gerar pensões de apenas 150 euros), sem beneficiarem de qualquer complemento social pago pelo Estado.

Para quem chegar aqui proveniente de Marte recordo que há dois anos o mesmo PS que agora se propõe passar a ricos a maior parte dos usufrutuários das pensões mínimas pediu a fiscalização ao Tribunal Constitucional dos cortes nas pensões de sobrevivência para os viúvos cuja pensão somada à de sobrevivência resultasse num valor superior a 2.000 euros. Note-se que a pensão de sobrevivência continuava a ser paga, apenas era cortada e não se ponderava o valor doutras fontes de rendimento. Mas nada disso convenceu o PS que viu nesta proposta um ataque aos mais desfavorecidos. O mesmo opinou o Tribunal Constitucional cuja fundamentação para chumbar esses cortes é urgente reler: “Na medida em que não haja um interesse público suficientemente forte que justifique uma afetação tão gravosa, tanto do direito à segurança social, quanto da confiança legítima que os cidadãos depositam na continuidade e estabilidade do regime jurídico em vigor e, sobretudo, na estabilidade de direitos já formados, aquela afetação terá de ser configurada como inconstitucional”. Apesar de o mesmo tribunal parecer ter entrado numa hibernação profunda desde Novembro de 2015 e de boa parte das suas decisões irem no sentido da defesa dos direitos adquiridos dos presentes pensionistas escamoteando os interesses dos actuais contribuintes e futuros reformados, aquilo que está neste momento em cima da mesa é a instituição de um regime de apartheid, em que de um lado estão cobertos de direitos os actuais pensionistas e do outro, apenas com a obrigação de manterem as suas contribuições em dia, estão os futuros reformados.

Assim se este ano quem vai reforçar a Segurança Social são os proprietários ricos no próximo serão os candidatos às pensões mínimas que num ápice passaram de pobres e miseráveis a proprietários de elevado património (que mesmo que exista pode não render nada!). Tenho a certeza que no outro ano outros ricos surgirão… Esta fulanização da tributação – tributa-se um determinado grupo ou tipo de rendimentos alegadamente para financiar uma despesa de caracter específico – não alimentará qb os cofres da Segurança Social mas tem grande serventia políticas: enquanto as corporações alardeiam o “combate às pensões de miséria”, a “reposição de rendimentos” e a “luta contra as desigualdades” vão reforçando o seu poder. Que é o mesmo que dizer que tratando de se manter no poder. Nesta matéria o que conta é mentir com convicção.