Maio de 2016. O dia ia no jeito do costume. O Presidente da República até parecia ter-se finalmente sentado. Na cadeira do pai mas apesar de tudo sentou-se. Sempre é um começo. Os jornalistas esses fazem umas peças que parecem decalcadas da octagenária viagem triunfal do presidente Carmona a África.

Passos Coelho está num acontecimento do PSD ao qual ninguém presta qualquer atenção. Os jornalistas destacam a sua falta de capacidade para comunicar.

António Costa, que todos os dias vê mediaticamente acrescentado o seu perfil de hábil negociador, prossegue na sua “tantologia” – hoje para anunciar que nunca houve tanto investimento – e prepara-se para chegar ao Marão.

Em resumo, tudo mais ou menos a correr nas balizas deste tempo novo.

Pelo meio, é certo, há umas manifestações de uns pais cujos filhos frequentam colégios com contratos de associação mas na verdade ninguém lhes liga muito: a estes manifestantes falta a linguagem do activismo que faz nascer as ondas de indignação nas redes sociais. Por outro lado, é óbvio que o fim dos contratos de associação é uma das exigências dos comunistas para continuarem a dar luz verde ao Governo. E todos sabemos que não há argumentos quando está em causa aumentar e reforçar o poder de Mário Nogueira

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Mas eis que na normalidade do tempo novo surge algo de realmente novo: José Sócrates comparece numa cerimónia pública – a inauguração do túnel do Marão – onde também estará o primeiro-ministro.

Como era de esperar, é de Sócrates que os jornalistas recolhem as declarações mais longas. E são de Sócrates as frases que surgem nos destaques dos noticiários.

Mas afinal o que foi Sócrates fazer ao Marão: dizer que não morreu politicamente naquele dia de Novembro, de 2014 em que foi levado do aeroporto para o DCIAP? Sim. Mostrar como continua a dominar a técnica dos sound bytes? Também. Provar a António Costa que se ele, Sócrates, quiser tudo pode mudar no PS, assim a Justiça o deixe livre? Claro. Mas não só. O que Sócrates nos mostrou é que não temos vergonha na cara.

Claro que é um gozo ver Sócrates a dizer aquelas coisas do costume: de repente, lá estava de novo aquela visão litigante do mundo, ele e os outros, o antes e o depois. Mas todos sabemos que aquele homem não só não devia estar ali como também não ignoramos que antes dele, qualquer outro líder em idêntica situação jamais teria comparecido numa cerimónia desta natureza. Porque isso seria entendido como uma falta de respeito para com o país. Porque o próprio não se sentiria bem. E porque não nos sentiríamos bem com isso.

Mas naquele esticar constante da corda entre o legal e o normal que o caracteriza, Sócrates deu mais um passo. E nós com ele logo aprisionados naquele constante jogo do que é legal ou não é legal. Do que pode ou não pode. Mas não só. Sócrates obrigou os outros protagonistas da cena política a moverem-se e mostrou como o pior pode muito bem-estar para vir e depressa.

Como? Ao perceber que Costa e os restantes membros do Governo, protegidos pelos vidros fumados do autocarro, evitavam ser fotografados ao lado de Sócrates, ao constatar como a desculpa arranjada por Passos Coelho para não ir ao Marão logo era transformada em mais uma prova da sua inabilidade para comunicar, ao ler a descrição da alteração ao protocolo da cerimónia de modo a que o antigo primeiro-ministro não aparecesse nas fotografias, percebi como Sócrates pode alterar o quadro político. Politicamente basta-lhe querer. O seu único entrave é a Justiça. Mas mesmo essa pode não ser impeditiva do regresso de Sócrates à política, para mais num momento em que o regime perdeu alguns dos seus contrapesos, ficando claramente descentrado.

Recordo que várias das regras implícitas do regime caíram em Novembro, de 2015 quando os vencedores das eleições passaram para a oposição. Desde aí muita coisa mudou: os acordos que vigoravam para a atribuição das presidências da AR, do Conselho Económico e Social, do Conselho Superior da Magistratura, da escolha de Provedor de Justiça e dos Juízes para o Tribunal Constitucional deixaram de ser válidas. Curiosamente não só continuamos a acreditar que se trata de uma alteração passageira mas também que os líderes políticos em funções a conseguem controlar.

Ora não só isso pode não ser verdade como nenhum dos protagonistas da cena politica parece ponderar a possibilidade da entrada de um “estranho” em cena. Hoje, no Marão, José Sócrates provou que pode ser esse “estranho”: o protagonista com que ninguém conta nem quer contar. E que no fim põe os outros a fazer contas.

As democracias tornaram-se o berço de ouro dos radicais, sobretudo daqueles que a rebaixam e destratam: que melhor símbolo dessa esquizofrenia das democracias que a forma como Pablo Iglesias, líder do Podemos, se apresenta e fala nas audiências com o rei de Espanha? Sim, esse Pablo Iglesias que chega à Zarzuela com ar de quem acabou de sair da cama é o mesmo que põe laço e smoking para ir às festas do cinema e da televisão! É tudo uma questão de prioridades.

Mas não só: a abulia das democracias é o caldo de cultura para que os populismos não só não sejam desmascarados como que se aceite como normal o que de facto não passa de má fé, oportunismo e chocarrice.

No Marão, em Maio de 2016, Sócrates mostrou a quem quis ver e ouvir que se quiser, e se a justiça não importunar muito, pode obrigar os outros protagonistas da cena política a moverem-se. Por agora para não ficarem consigo na fotografia. Depois para terem de disputar consigo os microfones e as câmaras. E por fim o voto dos eleitores. Esperar que seja a justiça a resolver o problema Sócrates não só é uma péssima ideia como um risco demasiado elevado.