Nunca percebi a aversão epidérmica que a ideia de um Bloco Central – entendimento entre PSD e PS em temas de fundo ou mesmo numa experiência governativa pontual – desperta em muita gente. Diz-se que será o fim da política, que depois disso só pode vir o pântano político onde mergulharemos pela inexistência de alternativas governativas diferenciadas, que é a morte da ideologia e coisas semelhantes.

Isso pode ser tudo verdade. Mas será pior do que temos hoje?

Repare-se nos trajectos recentes.

O PS que há meia dúzia de meses falava da reestruturação da dívida, que queria renegociar as metas orçamentais com os credores, que prometia ir a Bruxelas dar um murro na mesa em nome de uma mudança profunda na política económica europeia e que via no Syriza os primeiros acordes dos amanhãs que cantam, está hoje conformado e apresentou um programa eleitoral que esboça uma alternativa dentro da austeridade e não contra ela.

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O PSD, que teve de praticar uma governação com fortes danos sociais, que defende um Estado com menos peso na economia, que quer uma carga fiscal menor e que acredita que os problemas do emprego e do crescimento são resolvidos essencialmente pelas empresas, apresentou propostas eleitorais que tem como bandeiras um programa de desenvolvimento social, é mais conservador na redução de impostos austeritários e destina recursos públicos directos para a criação de empregos privados.

Há, evidentemente, várias propostas que distinguem os dois programas eleitorais. Mas é notória a necessidade sentida pelo PS para passar uma imagem de responsabilidade. E é óbvia a necessidade do PSD (da coligação) dizer que solidariedade e políticas sociais também são com eles. Pelo meio, tanto um como outro tentam mitigar as suas legítimas intenções que se encontram mais distantes do centro político para além da pura, e muitas vezes demagócia, tática política.

Não temos, de facto, um Bloco Central formal nem os líderes dos dois partidos parecem disponíveis para isso. Por uma razão simples: tanto o PSD como o PS tentam, por si só, ser individualmente o próprio Bloco Central. A ideia de que as eleições se ganham ao centro e o pragmatismo que ela induz no posicionamento eleitoral dos dois partidos, leva-os a tentarem ocupar esse espaço político anódino, o território onde todos os gatos são pardos, essa terra que sendo de todos não é verdadeiramente de ninguém.

A morte da ideologia e da diferenciação de propostas eleitoriais e de modelos de sociedade está muito mais aqui do que em eventuais experiências governativas pontuais que unam os dois partidos. Temos o custo da indiferenciação ideológica sem termos o seu proveito – a estabilidade numa série de matérias importantes.

O passado mostra que os fantasmas não passam disso mesmo. O Bloco Central já prestou bons serviços ao país quando, entre 1983 e 1985, lidou com o segundo resgate financeiro que nos livrou da bancarrota. A aliança entre Mário Soares (um outro Mário Soares, que soube como a austeridade pode ser mesmo necessária e que certamente não se reveria no de hoje) e Mota Pinto, com Êrnani Lopes nas Finanças, cumpriu com sucesso o duro programa assinado com o FMI e deixou os alicerces para o período de desenvolvimento que se seguiu. Não foi por isso que PS e PSD deixaram de ser os “queridos inimigos políticos” e eternos protagonistas da alternância governativa.

Mas pelo caminho que tomaram depois disso, com a preciosa ajuda da “terceira via” de Tony Blair e da sua declinação portuguesa protagonizada por António Guterres, PS e PSD transformaram-se em meros gestores de turno. O ponto alto dessa realidade ocorreu há quatro anos, quando Pedro Passos Coelho e José Sócrates se candidataram um contra o outro para a execução do mesmo programa eleitoral: o memorando de 36 páginas assinado com a troika. Com detalhe de medidas, objectivos quantificados e prazos calendarizados como nenhum outro programa eleitoral teve ou alguma vez terá.

Estas águas mansas sim, são pantanosas. E continuarão a ser enquanto não houver coragem para assumir um programa verdadeiramente liberal que se oponha a outro assumidamente socialista. Os que acham que a governação do PSD-CDS é neoliberal não sabem o que dizem. Da mesma forma, os que olham para este PS e descobrem radicalismo socialista também não sabem o que dizem. Nem a austeridade faz, só por si, de um social-democrata um neoliberal nem a irresponsabilidade orçamental transforma um social-democrata num radical de esquerda.

Quer ver como não se distinguem? Cá vai um quiz. Tente adivinhar qual é qual destas passagens dos dois principais programas eleitorais que estão em confronto no dia 4 de Outubro:

A: “É preciso olhar para o futuro, de modo que se definam objetivos de médio prazo capazes de orientarem uma ação política consistente e duradoura. Ser claro nas opções de fundo, valorizando os nossos recursos, isto é, as pessoas, o território, a língua portuguesa e o espaço lusófono, a posição de Portugal no Mundo; modernizando a atividade económica e o Estado; investindo no futuro através da ciência e da cultura; reforçando a coesão social através das políticas de segurança e solidariedade social e de saúde. No curto prazo, é necessário definir um programa de urgência, nas áreas críticas do relançamento da economia e do combate ao desemprego e à pobreza. E mobilizar nesta base toda a sociedade portuguesa, em direção a um futuro de qualificação e de progresso, e de modo que se construa um acordo de concertação social estratégico e plataformas alargadas de entendimento político, para vencermos juntos os problemas e aproveitarmos juntos as oportunidades da próxima década”

B: “Há um conjunto de desafios que se afiguram especialmente relevantes e que são assumidos neste programa como prioridade. É o caso, desde logo, da necessidade de responder ao “inverno demográfico” em que o nosso País está a cair há mais de três décadas (…) É caso da valorização das pessoas, quer pelo relevo que assume enquanto elemento estruturante no combate à pobreza e na promoção da mobilidade social (…) É o caso da defesa e do reforço do Estado Social, assegurando plenamente as condições da sua viabilidade e tendo como preocupação primeira o combate, sem tréguas, às desigualdades sociais. É o caso da promoção da competitividade da nossa economia [com] um modelo assente no crescimento do investimento privado e na inovação, nas exportações e nos bens transacionáveis e na reposição gradual do poder de compra. Um modelo em que a parcela de investimento público será seletiva e focada em pequenas e médias obras necessárias, não em projetos faraónicos ou sumptuosos. É o caso, por fim, da promoção da eficiência do Estado, de forma a torná-lo mais próximo dos cidadãos e mais amigo das empresas”.

Solução: O excerto A é do programa do PS e o excerto B é do programa da coligação PSD/CDS.