A pergunta é mais retórica que outra coisa: na verdade Sócrates nunca deixou de fazer política.

Meio país riu quando se ficou a saber que Sócrates se vê na cadeia como um Luther King ou um Nelson Mandela. Mas no Largo do Rato alguém mais perspicaz deve ter reparado que esta comparação só num primeiro e muito básico momento é explicada pela megalomania do antigo líder socialista. O que têm em comum Martin Luther King, Nelson Mandela e outros líderes em que Sócrates actualmente se revê? Todos eles transformaram a passagem pela prisão num processo de afirmação enquanto líderes incontestados. E é isso que Sócrates vai procurar fazer: sair da prisão como líder ou animar a partir dela um movimento em torno da sua pessoa.

O problema é que, aconteça isso quando acontecer, o PS tem líder. Pois, mas esse líder, seja ele quem for, não pode esquecer que para muitos socialistas Sócrates é o líder e os demais não passam de regentes.

Prevejo que nesta fase do texto metade dos leitores deve achar que eu não sei em que dia estou. Sejamos realistas: com ou sem referendo, a Grécia já teve os seus cinco minutos de fama. E a verdadeira tempestade para a UE essa pouco tem a ver com Grécia e já se está a configurar no horizonte, mais ou menos sobre a França. Essa França onde Marine Le Pen declarou esta precisa semana, com os bancos já fechados na Grécia e após a UE ter pactuado com um referendo que noutras circunstâncias todos teriam dito ilegal (detalhe que os populistas que campeiam por essa Europa fora, Marine Le Pen incluída, não se esquecerão de recordar em seu devido tempo): “Alexis Tsipras est incontestablement un leader”. Não é preciso traduzir pois não?

Já se percebeu que a simples possibilidade de esta senhora ser a próxima presidente da França faz parecer mesmo um conto de crianças a crise a que Varoukafis e a sua teoriazinha dos jogos aplicada às finanças conduziram a Grécia? Depois de acusar a UE de “terrorismo” para mais no jornal de um país, a Espanha, onde existem milhares de pessoas com a sua vida destruída pelo terrorismo, Varoufakis explicou a sua estratégia: os credores não podem deixar de emprestar dinheiro à Grécia porque a Grécia já lhes deve muito dinheiro – “hay demasiado en juego, tanto para Grecia como para Europa, por eso estoy seguro. Si Grecia se estrella, un billón de euros (el equivalente al PIB español) se perderán. Es demasiado dinero, y no creo que Europa se lo pueda permitir.” – Perante a indigência deste varoufakiano raciocícinio só resta recorrer ao exemplo do professor António José Saraiva: ao ouvir as ridículas perguntas de um agente da PIDE sobre as suas leituras, António José Saraiva não se conteve e desligou o aparelho auditivo (cuja pilha poupava!) para exclamar em seguida, cheio de razão, “anda uma pessoa a gastar pilha com isto!”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por isso, antes que toque a rebate para nos trasladarmos com as armas e bagagens mediáticas da crise da Grécia para o grave problema da França, resolvi fazer um interregno e dedicar-me ao que nos espera em Portugal e que pode ser bem mais complicado do que parece. (Mais a mais entre nós e a França está a Espanha onde não só o radicalíssimo Podemos está em vias de ser governo, como será difícil a UE após o atrougalhado referendo grego continuar a não validar um referendo da Catalunha à sua independência.)

Os partidos estão em Portugal numa hora de mudança: o CDS pode fazer a coligação ganhar as próximas eleições, mas quanto vale o CDS depois da coligação? Provavelmente pouco mais que nada. Talvez não dê sequer para chamar um táxi!

No PSD as legislativas são também e sobretudo um plebiscito entre Passos e os seus críticos. Se Passos tiver um resultado humilhante nas eleições, o PSD entrará numa daquelas suas fases agónicas de luta pelo poder entre personalidades (as personalidades brotam por ali como cogumelos), tendências, círculos, proximidades, linhas, correntes e muita falta de ideologia, ideossincrasia esta que faz ora a força ora a fraqueza dos laranjas. E no PS temos já instalado um drama a sério que as eleições, seja qual for o seu resultado, potenciarão.

Se os resultados forem bons para o PS, o mínimo que muitos socialistas esperam é que Costa desafronte Sócrates e ponha na ordem os juízes (muito oportunamente Carlos César já veio prometer uma revisão da legislação sobre prisão preventiva, uma iniciativa que não deve grangear um único voto ao PS, antes pelo contrário, mas que será necessária para acalmar a ala socrática do partido). Se os resultados forem maus para o PS não deixarão de ser explicados através da gestão que Costa fez do caso Sócrates.

Os jornalistas até vão fazendo títulos “líder socialista-friendly” em que Costa nunca é responsável pelos desaires do PS. Ao contrário do que sucedia ao pobre Seguro, nunca Costa dá tiros nos pés. “Sócrates e Grécia atrapalham Costa” – escreve-se para explicar o desastre das sondagens. Costa nunca se atrapalha. É atrapalhado pelos outros. Ora no que à Grécia respeita, Costa tem-se atrapalhado a si mesmo mais do que a conta e não vale a pena culpar a Grécia ou o Syriza que já têm que lhes chegue e sobre na matéria das culpas: depois de um arrebatamento inicial com a vitória do Syriza, (arrebatamento tão forte que até se esqueceu que os socialistas gregos tinham sofrido uma derrota estrondosa), Costa deixou-se cair na armadilha de querer fazer de conta que não tem opinião, recusando-se por exemplo a dizer como votaria no referendo grego e alegando que “não gostaria de ver os nacionais de outros países a dizerem como é que nós devíamos votar”. Explicação só passível de não causar estranheza para lá de Marte, pois quer o PS, quer os seus diversos líderes e quadros, participam activamente há décadas nas campanhas eleitorais dos outros países, não se inibindo de lhes dizer como devem votar. Antes pelo contrário. Ou será que quando Costa assina acordos com o líder do PSOE está a querer dizer aos espanhóis para pensarem bem se devem antes votar Rajoy?

Já no que a Sócrates respeita este na verdade não atrapalha Costa. É muito mais complicado que isso. Ou seja, a atrapalhação seria de facto o problema caso Sócrates estivesse disposto a resolver na justiça os seus problemas com a justiça. Isso é o que António Costa deseja que aconteça e desejam muitos milhares de portugueses em que me incluo. Mas não é isso que está a acontecer e muito menos o que vai acontecer: Sócrates quer resolver através da política o seu caso. Mais: independentemente do desfecho que esse caso tiver, recusa-se a deixar a política. Quem lidera o PS tem de ter em conta que com PS, sem PS ou contra o PS, Sócrates vai continuar a fazer política.

Continue Sócrates detido ou não (em Setembro haverá mais uma revisão das medidas de coacção e Sócrates em liberdade é o maior embaraço que nesse mês pode acontecer a um líder do PS) o que está e estará em causa nos próximos tempos é para já aquele princípio que nos diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. É certo que na Física há quem questione esse princípio, mas como em Portugal bem se poderá ver nos próximos meses se esse lugar/tempo for a liderança política não só dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo, como um deles tem de vencer o outro.