O Presidente da República não se poupa. Aparece em todo o lado, fala sobre tudo, e põe-se ao lado de toda a gente. Há quem pense que é feitio, há quem desconfie que é estratégia. Não importa agora o que é. A imprensa gosta, sempre muito excitada com as “violações do protocolo”; e o povo e o país oficial têm-no acompanhado, sem novidade. Até ontem.

Ontem, o Presidente da República foi convidado para inaugurar a “Casa Miguel Torga” em São Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa. Não era o único convidado. O presidente da Câmara Municipal também se terá lembrado do ex-primeiro ministro José Sócrates, que, como vem sendo costume, não faltou. Segundo o relato dos jornais, Sócrates, no fim dos discursos, terá avançado para o Presidente, provocando um encontro. O Presidente ter-lhe-á dito: “Parabéns”. Sócrates ter-lhe-á respondido: “Boa sorte”. Fotos descontraídas e sorridentes fixaram o momento para toda a eternidade.

Logo que a justiça o soltou, José Sócrates voltou imediatamente a povoar os salões, ecrãs e páginas do país. Segundo a imprensa, já terá sido convidado pelo secretário-geral da UGT para a reunião da tendência socialista no próximo fim de semana. Na reunião dos sindicalistas, estará por ter sido secretário geral do Partido Socialista; em São Martinho da Anta, esteve por ter sido primeiro-ministro. De facto, Sócrates é um ex-muita coisa, o que justificará todo o tipo de convites: ex-deputado, ex-ministro, ex-primeiro-ministro, e até, a crer no processo que a justiça lhe moveu, ex-autor de best sellers. Mas há duas coisas que José Sócrates não deixou de ser: um arguido por crimes graves, alegadamente cometidos durante o exercício de funções públicas, e um arguido que desde logo se recusou a reconhecer a justiça e se declarou vítima de uma manipulação partidária das polícias e dos tribunais.

Quer tenha razão a justiça, quer tenha razão Sócrates, este é um caso que põe em causa as instituições democráticas de um modo radical. Se a justiça está certa, Portugal teve um chefe de partido e de governo que conspirou contra as instituições, sem que essas instituições tivessem, em devido tempo, reagido e anulado essa conspiração; e se a verdade está com Sócrates, então não há Estado de direito em Portugal, e neste país da UE os cidadãos estão sujeitos ao uso faccioso da justiça, como numa qualquer ditadura do Terceiro Mundo.

O Presidente da República, pelas suas funções, representa o Estado. O Estado que neste momento, através do poder judicial, acusa Sócrates de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais; o Estado que Sócrates, por sua vez, acusa de estar a ser utilizado, contra a lei, para consumar uma mera perseguição política. Quem ontem se deparou com os sorrisos e os cumprimentos entre o Presidente da República e o arguido do “Processo Marquês”, que terá concluído? Que, condenados a encontrar-se, ambos preferiram fintar os óbvios constrangimentos com uma cortesia banal? Que, como terá comentado o Presidente, em Portugal nunca se “discrimina” ninguém, seja qual for a razão? Ou que nada neste regime é afinal suficientemente sério para impedir um momento de boa disposição?

O “breve encontro” do Presidente da República com José Sócrates não deveria ter acontecido. O Presidente é demasiado importante para correr certos riscos. Em Maio, na inauguração do Túnel do Marão, o actual primeiro-ministro evitou pelo menos deixar retratos com Sócrates. A Presidência da República deveria ter tido ainda mais pudor e recato. O Presidente não se protegeu, ou ninguém protegeu o Presidente. Noutros países, isto teria consequências – porque, por mais estranho que isso possa parecer em Portugal, há países onde a justiça e a política são levadas a sério.

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