Desde o tempo de Woodrow Wilson que se convencionou que os presidentes norte-americanos, no final de janeiro de cada ano, se dirijam ao Congresso, e à União – primeiro através das notícias dos jornais, agora já em direto pela televisão – com três objetivos principais. Dar conta dos sucessos políticos do ano anterior; apelar ao Congresso que seja benevolente na votação das leis sobre as quais têm poderes superiores aos do presidente: e – de quando em vez –, aproveitar as câmaras de televisão para anunciar uma ou outra política, de forma a obter apoio direto da população, e tentar pôr os legisladores entre a espada e a parede. Na terça-feira Donald Trump estreou-se no discurso do Estado da União.

Não vou deter-me nos temas internos. Continuam a sentir-se as influências populistas e nacionalistas, e a visão muitíssimo pessimista (“jacksonianamente” pessimista) do estado ainda “faroestiano” da nação, sem lei nem ordem, sem infra-estrutras e com muitos americanos a sofrer injustiças perpetradas (subentende-se) pela gestão democrata danosa. Todo o que os apoiantes de Trump querem ouvir.

Por isso mesmo a política internacional tem de estar ao serviço da política interna. Ainda não haja nada de muito novo, há um elemento que é exposto de uma forma mais assertiva do que é habitual. Disse Trump que “quanto mais reforçamos as nossas amizades, também estamos a recuperar claridade sobre os nossos adversários”. Isto a propósito das reações negativas em sede da Assembleia Geral das Nações Unidas ao reconhecimento norte-americano de Jerusalém como capital de Israel (uma jogada política de muito maior alcance que melindrar os palestinianos, como já foi dito noutro texto). Queixou-se Trump que muitos dos estados que se opuseram são também recipientes de ajuda externa norte-americana. E este abandono dos EUA nesta decisão delicada (abandono e delicada são palavras minhas) valeu um pedido ao Congresso para reanalisar a direção da ajuda internacional norte-americana para que só chegue onde “sirva os interesses americanos” e “beneficie os amigos da América”.

Quem são afinal os “amigos” de quem estamos sempre a ouvir falar e quase nunca são discriminados? Israel? A Arábia Saudita? A Polónia? Alguns estados asiáticos que se opõem à emergência da China? Não sabemos verdadeiramente. Sabemos apenas quais são as duas condições necessárias: apoiar as posições e políticas (externas) dos Estados Unidos e estarem dispostos a pagar o preço, ou seja, a serem igualmente portadores do fardo, pelo menos financeiro, da vontade política americana.

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É que a verdade é que Donald Trump quer uns Estados Unidos fortes e interventivos internacionalmente. A sua administração procura uma espécie de estratégia de primazia realista (em oposição à primazia liberal) em que é necessário criar um equilíbrio difícil: por um lado requer que não se abandone por completo o retraimento estratégico (ainda que Trump esteja a apostar num arsenal nuclear cirúrgico em caso de escalada na Coreia do Norte) porque os Estados Unidos precisam, especialmente depois do enorme corte nos impostos, de recuperar de uma dívida externa monstruosa que mais uma vez congelou o estado federal por uns dias. Por outro lado, para que a projeção de poder seja eficaz (especialmente se os meios forem reduzidos) é necessário aliados regionais fortes, interessados em apoiar Washington, seja qual for o seu curso político.

Esta estratégia pode funcionar pontualmente. O Japão e Coreia do Sul tudo fazem para agradar ao seu aliado fundamental para evitar um desastre nuclear e a aceleração da influência chinesa na região. Tal como Israel e a Arábia Saudita, porque os primeiros precisam da reafirmação do apoio norte-americano, consideravelmente atenuado na era Obama, e os segundos deitarão mão a tudo que os ajudar a conter o Irão. Mas os casamentos de conveniência esgotam-se assim que uma das partes se sente a perder benefícios. Trump conta com a ideia de que qualquer estado quererá ser aliado da maior potência internacional – afirma-o, indiretamente, várias vezes. Mas W. Bush acreditou no mesmo e o resultado foi o que se viu.

A primazia liberal tinha uma vantagem competitiva sobre todas as outras formas de organização internacional: havia a perceção de que amizades internacionais não se constroem nem se mantêm com ameaças, mas com diplomacia, e que as alianças dependem da confiança. Uma discordância, mesmo que profunda, não dita necessariamente cortes de relações ou de apoio. A primazia realista tem esse risco: vive ao sabor dos acontecimentos internacionais. O que Franklin Delano Roosevelt percebeu e foi absorvido diligentemente pelos seus sucessores foi isso mesmo: a estabilidade internacional depende de alianças fortes ainda que com estados mais fracos. Garantem a retaguarda – e às vezes a primeira linha – em termos geopolíticos e a legitimidade em termos morais e de prestígio internacional. Asseguram a paz regional onde os Estados Unidos nem sempre conseguem chegar. Os ganhos podem ser mais demorados, mas os resultados São mais previsíveis e duradouros.

Setenta anos deste regime internacional mudaram a forma de pensar de muitos estados, que vão resistir a voltar a um mundo em que se segue o mais forte porque é o mais forte. Especialmente quando há alternativas no horizonte. Esta política de coligações de vontade já provou ter muitas limitações. Mas Trump e a sua administração parecem teimar em não ter este elemento em conta.