Desde que comecei a escrever sobre a arquitetura de segurança e defesa dos Estados Unidos no Indo-Pacífico sou interpelada muitas vezes com as perguntas: e em que é que isso muda a nossa vida, aqui do outro lado do mundo? E a Europa?

As duas perguntas tem respostas diferentes, ainda que interligadas. Na segunda questão não me alongo muito, porque é tema que já debati neste jornal algumas vezes. Os estados europeus terão de tomar decisões que poderão ser facilitadas pelo novo governo alemão, que parece mais resoluto em relação à China, condição inultrapassável para reforçar e selar as relações transatlânticas.

Também há sinais mistos da parte da administração Biden. Por um lado, um convite aberto à Europa como comunidade de segurança democrática para pertencer a esta ordem americana que opõe democracias a autocracias. Por outro, momentos diplomaticamente desajeitados como o diálogo pouco claro sobre a retirada do Afeganistão e a ausência de aviso prévio à França sobre o AUKUS. Talvez o elemento mais importante da relação transatlântica seja mesmo o Conselho de Comércio e Tecnologia, lançado este verão, que pretende estreitar os laços entre os aliados dos dois lados do Atlântico ao nível tecnológico, uma área que vai ter uma importância determinante no futuro como uma das razões de conflito entre os rivais na transição de poder. Este Conselho promete uma transição tecnológica “com valores”, que se opõe evidentemente à China já classificada por muitos – por boas razões – de “autocracia tecnológica”.

Mas a primeira pergunta – o que temos nós, cá tão longe, a ver com a arquitetura de segurança no Indo-Pacífico – parece-me crucial e só muito vagamente respondida. Não consigo deixar de fazer um paralelo entre o início da Guerra Fria e o início do conflito pela transição de poder entre os Estados Unidos e a China. No final dos anos 1940, como hoje, em muito pouco tempo, houve uma mudança abrupta na geometria de alianças, na deslocação de capacidades, na diplomacia relativamente a um inimigo comum e na retórica de liderança por parte dos Estados Unidos.

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A reconstrução da Europa sob a liderança americana com tudo o que isso implicou – a  edificação de um conjunto de estruturas institucionais de defesa contra a União Soviética; uma ordem normativa e de segurança do mundo livre; e a deslocação das capacidades norte-americanas para as fronteiras da Cortina de Ferro – foi, efetivamente, uma mudança significativa, não só para os atores mais diretos como para o mundo. Da mesma forma, a securitização da China por Donald Trump, a reconstrução multilateral das relações no Indo-Pacifico e o reforço das linhas de defesa com antigo e novos aliados (por esta administração e pela anterior) e, agora, com Biden, a reconstrução de uma ordem separada muito mais internacionalizada – devido à natureza do mundo que se globalizou – mudaram, num ápice, a forma como o sistema internacional funcionará daqui para a frente.

Hoje, como nos anos 1940, poucos poderão ficar de fora destas transformações. E a Europa, se quiser continuar a ser competitiva, menos ainda.

Há fases na história que três ou quatro anos são o que basta para que a política internacional mude de direção. Este tempo é determinante para as décadas que se seguem, porque é definidor de uma restruturação sem paralelo. É aqui que estamos. Quando me perguntam que diferença nos faz esta mudança no Indo-Pacífico a resposta é esta: três ou quatro anos podem, silenciosamente, abalar o mundo. E estes últimos três ou quatro anos estão nessa categoria.