Não estou a dizer que vai haver ataques nucleares. Estou a dizer que a contenção mútua não é tão eficaz quando o que está em jogo é salvar a face. E nesse aspeto tanto Trump como Kim Jong-un têm alguma coisa importante a defender.
Temos assistido, nas últimas semanas, a uma escalada de tensão entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos da América. Segundo uma notícia da Reuters de ontem à noite, a opção (perigosa em termos de equilíbrio económico internacional) de sancionar bancos chineses que viabilizam transações com Pyongyang está cada vez mais presente nos debates internos de Washington. Ao mesmo tempo, Kim Jong-un parece ter percecionado alguma fragilidade na legitimidade da atual presidência americana e terá decidido que era tempo de desafiar a comunidade internacional.
É quase unânime a condenação internacional do regime comunista, mas devido à existência de armamento nuclear, a parte norte da península coreana tem sido tratada com pinças. Já se sabia que havia um arsenal suficientemente grande e meios de lançamento suficientemente potentes para atingir a Coreia do Sul e talvez o Japão. E as alianças permanentes de Washington com estes dois estados levariam a uma retaliação pronta dos Estados Unidos. Mas os novos mísseis de projeção e pequenas as ogivas nucleares que torna a integridade física dos EUA mais vulnerável trouxeram este assunto a um nível mais alto de importância e urgência.
Sobre estes acontecimentos há quatro argumentos que interessa fazer (ainda sabendo que a informação é incompleta, já que Pyongyang e Pequim são regimes fechados e a informação que nos chega, ou é clandestina ou filtrada pelos respetivos governos).
O primeiro é que Donald Trump é, como já foi dito noutros artigos, um Jacksoniano. Do ponto de vista da política externa, os Jacksonianos são conservadores contidos – do tipo deixem-nos lá em paz – até lhes chegar a mostarda ao nariz. Isto, em linguagem política significa que, segundo Walter Russell Mead (e agora já outros autores que se dedicam a estudar o presidente Trump e a sua base de apoio), o mais importante valor desta tradição é a honra. É por patriotismo que os Jacksonianos vão para a guerra. E quanto sentem que a honra da nação está a ser posta em causa. Daí que as provocações do líder norte-coreano tenham o duplo efeito, em parte da administração Trump, de desafiar a segurança e os valores simultaneamente. Aliás, eu até diria que o “fogo e a fúria” americanos estão a ser contidos pelo pacto conservador moderado entre o Departamento de Estado, o Pentágono, e o Conselho para a Segurança Nacional (que descartam o segundo elemento como quase insignificante).
O segundo é que Kim Jong-un precisa de um inimigo externo para conservar a legitimidade. E precisa de o provocar para justificar ao povo a sua política dantesca – leia-se retirar à população o que mais há de elementar, material e politicamente, para financiar e manter a sua ditadura e continuar a desenvolver o seu armamento nuclear. Se os EUA já eram o inimigo oficial, Trump, intempestivo, torna-se um alvo natural. Ora para quem tem privado o seu povo de tanto, uma resposta americana robusta podia até ser o início de uma nova era de poder reforçado.
O terceiro é que Pequim se encontra entre a espada e a parede. A espada é a Coreia do Norte. À China serve na perfeição ter um estado pária na sua vizinhança. Pyongyang serve-lhe de bandeja uma razão para ser aceite como líder regional. Aliás a sobrevivência da Coreia do Norte deve-se, em grande parte ao fluxo de importações e exportações entre os dois países. A parede é a comunidade internacional. Pequim quer ser visto como um parceiro credível (mais que um competidor) para ir paulatinamente estendendo a sua influência pelo mundo – i.e. exportar o seu modelo de capitalismo de estado, criar relações comerciais de dependência com outros estados, ser um comprador privilegiado de matéria prima e adquirir empresas-chave um pouco por todo o mundo. Se quando a comunidade internacional precisa de um membro poderoso e responsável à altura do problema e esse membro falha, o prestígio desce a pique. Daí que a China tenha permitido a passagem de sansões duríssimas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, um gesto inédito até à data. Mas terá que resolver na sua vizinhança a cedência ao Ocidente.
O quarto ponto, para concluir, é que deixámos de ter certezas quanto ao conceito de dissuasão nuclear. Kenneth Waltz defendeu que quanto mais estados tivessem armamento nuclear mais pacífico seria o mundo. Sabendo que a deteção do lançamento de um míssil por países terceiros leva segundos, o risco de aniquilação seria tão grande para o agressor com para o atacado (que naturalmente retaliaria). Enganou-se. Não estou a dizer que vai haver ataques nucleares. Estou a dizer que a contenção mútua é menos eficaz quando o que está em jogo é salvar a face. E nesse aspeto tanto Trump como Kim Jong-un têm alguma coisa importante a defender. O presidente americano pode ser abandonado pela sua base de apoio Jacksoniana (a que lhe segura os níveis de popularidade) e o líder coreano precisa deste despique para garantir a sobrevivência do regime. Com estas condições, uma possibilidade, mesmo que pequena, de um desfecho infeliz (ainda que não necessariamente nuclearizado ou, como se referiu no início do artigo, relacionado com o desencadeamento de uma crise económica com consequências imprevisíveis) torna-se possível. A ameaça nuclear tem agora outros tentáculos, outras possíveis consequências. E têm que ser levadas a sério.