Da próxima vez que voltar a afirmar que quarenta e um anos depois do 25 de abril ainda temos uma democracia disfuncional, posso exibir esta semana como prova. E ilustro com dois casos.
O primeiro absurdo da semana passou-se na segunda feira à noite, na Barca do Inferno, e não foi pelo abandono em direto de Manuela Moura Guedes. Vi o programa poucas vezes e geralmente só as intervenções de Sofia Vala Rocha, de quem sou amiga (fica a declaração de interesses). E não via porque o nível de opiniões políticas das senhoras à esquerda está como o de Soares na sua fase os-mercados-provocam-terramotos, a acompanhar o que parece ter geração espontânea em muitas pessoas da esquerda (de ambos os sexos): sofrerem de uma certa confusão entre regras do debate político e os métodos da invasão da China por Kublai Khan.
Só até à saída de Manuela Moura Guedes, na última Barca, tivemos Isabel Moreira (uma criação política socrática) dizendo que Sofia V. Rocha não era séria a debater, ao contrário de si própria, garantidamente ‘séria quando falo’ – ao mesmo tempo que proferia a falsidade de que o PS não pretende (como Sofia afirmava) cortar nas pensões futuras. O que, recorde-se, foi assumido aquando da apresentação do cenário macro do PS: a partir de 2027 as pensões terão já o corte máximo resultante da baixa da TSU que o PS promete. É simples: agora paga-se menos e depois recebe-se menos. E quando Moura Guedes estava de saída, a magnânima Moreira não resistiu a desferir um último ataque a quem já estava em retirada.
Já Raquel Varela, a mais afamada académica e autora mundial em tudo e mais um par de botas, declarou-se humildemente uma ‘especialista em Segurança Social na Universidade Nova de Lisboa’. Apesar de ser historiadora (e eventualmente até poder conhecer a História da Segurança Social), de erradicar a demografia como risco para a sustentabilidade da SS e não entender que as pensões recebidas não têm nada a ver com ‘poupança’ dos valores descontados, e de a SS ser um assunto predominantemente económico, Varela é especialista. A mesma Varela que aparenta dificuldade com conceitos económicos básicos e que retira deles conclusões delirantes que apresenta – outra vez com modéstia e usando um jargão pseudo-económico – como geniais.
(Uma das teses económicas de Varela, das vindas diretamente de Úrano, é a de que o euro não é uma moeda única e quando está nas mãos das pessoas vale – quiçá por artes mágicas – consoante a produtividade de cada um. Os meus euros não valem o mesmo dos dos caros leitores, portanto. Atentai governos: urge estabelecer taxas de câmbio interpessoais para os euros. E quando o euro falecer, é só os estrangeiros mandarem para cá os euros na sua posse que foram emitidos em Portugal. E está tudo bem.)
Apesar de ser uma especialista peculiar, isso não impediu Varela de desdenhosamente contrapor a sua qualidade de ‘especialista’ com a de Sofia Rocha de ‘assessora do PSD’. Ou de desvalorizar os números de Moura Guedes (‘Manuela Moura Guedes a explicar a Segurança Social, por amor de Deus’), só porque sim.
Isabel Moreira e Raquel Varela são dois dos exemplos perfeitos da característica muito Estado Novo que atinge parte da esquerda nacional: supor que os indivíduos de direita são merecedores, só por isso, de insultos e desrespeito. E mais: a gente de direita que tenha como posição natural a bajulação à esquerda, se faz favor estejam bem amestrados e nem pensem em ousar expor contradições e mentiras e insucessos da esquerda (que são sempre cabalas inventadas, evidentemente); e quando são insultados e desrespeitados, que mostrem cara alegre.
O segundo evento absurdo da semana ocorre hoje: vai a condecorar pelo Presidente da República – que, tanto quanto se sabe, não foi raptado por extraterrestres nem substituído por um clone – Teixeira dos Santos, o ministro das Finanças de Sócrates.
Dêmos uma espreitadela ao curriculum de Teixeira dos Santos.
Como ministro, todos os anos, em valores absolutos, aumentou a despesa pública. Patrocinou um aumento galopante da carga fiscal aos contribuintes (fora o que acordou com a troika). Deu o beneplácito aos desvarios das PPP, aos maiores excessos da Parque Escolar e, em 2009, fez campanha alegre pelo PS (foi candidato pelo Porto) prometendo TGV e novo aeroporto de Lisboa. É um dos progenitores da aberração ruinosa que é o aeroporto de Beja.
Em 2009 ajudou o PS a comprar as eleições, desbaratando o dinheiro dos contribuintes, enquanto proferia a mentira de que o défice naquele ano seria de 5,9% (foi 10%). Em 2010, o controlo das finanças públicas já era anedota datada e reincidimos em 11,2% de défice, fazendo disparar os juros da dívida pública portuguesa – o tal fenómeno que mais tarde ditou a intervenção da troika.
Quando um Presidente – eleito pelo centro-direita – decide condecorar quem diligentemente nos trouxe até ao limiar da bancarrota e provocou um ajustamento brutal na vida dos cidadãos (na forma simpática de impostos, desemprego, diminuição de rendimentos, emigração e similares), o que dizer? Quando se premeia a imprudência, a incompetência e a mentira, o que esperar da nossa democracia?
Quando a direita eleita se comporta sem resquício de respeito pelos seus eleitores e por todos os cidadãos, concluo que de facto merece insultos. Da esquerda e da direita.