Sei bem. António Costa, arvorado em grande facilitador das férias descomplicadas é muito risível – e nós rimo-nos. Temos de perceber: esta é a única oportunidade nestes quatro anos que o nosso estimável pm teve de mostrar algo semelhante a autoridade. Nos incêndios de 2017 foi o que se sabe: fugiu para uma ilha espanhola mal o focus group o deixou. Quando começou o seu governo, prometendo (por interposta pessoa) pôr a tremer as pernas dos banqueiros alemães e espatifar a política orçamental imposta pela UE, foi-lhe dito como a um adolescente desorientado que tivesse juízo ou lhe cortavam a mesada. Teve juízo, felizmente, tornou-se um filho obediente (ou um bom aluno) e não deu cabo das contas públicas. (Deve estar na agenda para a próxima legislatura).

Nas negociações desta última Comissão Europeia e para a presidência do Parlamento Europeu e do FMI, deu uns valentes trambolhões. Pacientemente também lhe explicaram que as habilidades de pechisbeque capazes de formar geringonças podem servir para Portugal, mas não são adequadas para instituições sérias. Não conseguiu nenhuma geringonça no PE, não teve qualquer influência na escolha da presidência da Comissão, Centeno não foi para o FMI. Teve de se contentar em passar a informação de que havia recebido um convite muito tentador, mas que gostava tanto de nós, portugueses, que recusara e ainda juntava um beijinho repenicado para cada um.

Pelo que, além de Centeno no Eurogrupo dizendo a outros países que gastaram tudo em vinho e mulheres, Costa vive agora a sua oportunidade de se mostrar um líder com autoridade e lá veio lampeiro salvar-nos do cataclismo energético. Portanto, concordo. Dá vontade de rir. É teatro, é propaganda, é papas e bolos para enganar os tolos. Mais: tem muita piada ver os blogueiros e tinteiros, que me insultavam amiúde quando esbracejava contra as greves e as incessantes manifestações do tempo da troika, agora (e na greve dos enfermeiros) amofinados com os abusos que se fazem do direito à greve. Pois é.

Domou-se o PCP e a CGTP para quê? Afinal ainda existem trabalhadores maus que insistem em fazerem maldades ao magnífico PS. Sucede que – a direita que agora fica muito ofendida com os atropelos ao direito à greve e a esquerda que é fiel pelo menos a este princípio que me perdoem – neste caso o governo tem toda a razão para não deixar o país aprisionado nas reivindicações dos camionistas de materiais perigosos.

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Vamoláver (como diz o nosso garboso pm). Não que os motoristas – se o que tem sido contado na comunicação social tiver aderência à realidade – não tenham razão para reclamar do seu ordenado base, que é baixo tendo em conta a mercadoria que transportam. Também, segundo a reportagem de Beatriz Ferreira, deveriam protestar por horários mais decentes e que permitam vida familiar, bem como contra as mudanças de turno que impedem ritmos de sono saudáveis. A propósito das descrições desta vida laboral, recordei-me de um caso de estudo por que passei na universidade sobre stress ocupacional dos operadores de gruas – por ser um trabalho solitário e, correndo mal, com capacidade de estragar vidas a pessoas. Fui ver se o mesmo se passa com os motoristas de matérias perigosas – e sim, têm problemas de sono, maior propensão para depressão , stress ocupacional e várias outras maleitas. Fora o contacto com substâncias danosas. Há fundamento para o argumento de profissão de desgaste rápido.

No meio disto tudo, fiquei horrorizada por saber que há condutores de veículos pesados, com potencial de provocar danos de monta, trabalhando catorze horas seguidas, não lhes sendo dada oportunidade de descansarem e dormirem em horários constantes. Não entendo como este perigo público é permitido, tanto mais que para os motoristas de distribuição de matérias não perigosas as restrições são tremendas (e com a polícia sempre – e bem – a escrutinar os tacógrafos): não podem mesmo trabalhar mais de oito horas em cada dia; a cada quatro horas a guiar têm de parar por tantos minutos; proibido começar a trabalhar num dia menos de doze horas depois de terem terminado de trabalhar no dia anterior.

Porém, a fúria com os patrões não é inteiramente justa. Porque os patrões estão dispostos a pagar – e pagam – muito mais que o ordenado base. Não vi nenhum recibo, mas, dado o diferencial entre o ordenado base e o recebido (quase o dobro), presumo que paguem horas extraordinárias, subsídios de turno, subsídio de isenção de horário, horas noturnas, domingos e feridos (estes todos contam para subsídios de doença e reforma, não somente o ordenado base) e, aparentemente, mais uns subsídios que não dão lugar a descontar para a segurança social nem têm retenções de IRS.

Se os montantes recebidos pelos motoristas de matérias perigosas são baixos, muito se deve à quantidade exorbitante de retenções de impostos que neles incidem. Não entendo a razão por se enfurecerem contra os patrões – que lhes pagam a eles e ainda uma boa porção ao estado – em vez de exigirem ao governo impostos mais baixos sobre salários e complementos. No entanto será uma greve útil por outros motivos. Se tenho simpatia por reivindicações de determinadas profissões, julgo sempre inadmissível os custos que as greves para reivindicações corporativas acarretam à generalidade da população. Geralmente os mais pobres, que não conseguem escapar aos grevistas.

Se há protestos muito justos – os camionistas, os professores que são desconsiderados e andam com a casa às costas, os enfermeiros, os polícias, e tantos outros – não consigo defender que se despreze a saúde das pessoas que precisam do SNS, a vida dos adolescentes fazendo exames para entrar na universidade, que se pare cidades e um país com greves dos transportes públicos ou de quem assegura bens básicos para a vida quotidiana.

O caminho é por aqui. Serviços mínimos abrangentes, requisição civil se necessário. Que faça escola. O direito à greve não é uma vaca sagrada perante outros direitos.