Nos próximos anos podemos estar um pouco mais tranquilos. Com o que ardeu em 2017 (mais de meio milhão de hectares), mais o que ardeu principalmente em 2013 e 2016 (mais uns 250 mil hectares), é menos provável que se repitam fogos tão catastróficos como os deste ano. Mesmo com muitas alterações climáticas. A razão é simples: para acumular nas matas e florestas o material combustível necessário a estas tragédias são necessários 12 a 15 anos. Basta recordar como tivemos os anos terríveis de 2003 e 2005 (os dois piores até agora) e a seguir uma relativa acalmia que durou – isso mesmo – uma dúzia de anos.

Há aqui uma oportunidade e um risco. A oportunidade é quase a de quem encontra uma folha em branco e pode redesenhar a floresta da melhor forma possível (o que, mesmo só sendo parcialmente verdade, cria mais oportunidades para fazer uma floresta diferente). O risco é o da ilusão de que algumas mudanças na protecção civil e nas florestas nos libertaram do flagelo dos incêndios. Foi isso que disseram, e porventura até pensaram, os políticos que há 12 anos optaram pelo modelo de protecção civil que tão tragicamente falhou.

Para enfrentar o risco teremos de esperar pelo sucesso da Unidade de Missão presidida por Tiago Oliveira (uma excelente e auspiciosa escolha, como explico no Post Scriptum deste texto). Para aproveitar a oportunidade temos de perceber de uma vez por todas aquilo que Domingos Xavier Viegas confirmou durante o estudo que dirigiu sobre o fogo de Pedrógão Grande: este é “um país que está à margem do país que é imaginado em Lisboa”. É um país despovoado e pobre, terrivelmente envelhecido, sem uma economia que o sustente e sem votos suficientes para comover os políticos das cidades – porventura até os das suas sedes de concelho. Graça Casalinho (a senhora que nos trata da dívida pública) escreveu esta semana uma bela crónica sobre esse país desconhecido, um país que resulta do colapso do nosso mundo rural — tratar dele só pode ser o primeiro momento crítico de todo este processo. Como disse João Guerreiro, que presidiu à Comissão Técnica Independente, “há um problema de raiz a resolver, o interior sem gente não tem futuro”. Tem toda a razão.

Estranhamente, como já notei, este debate tem sido secundarizado. Mas sem procurarmos ao menos perceber que este é, de longe, o maior dos problemas nunca perceberemos nada.

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Muito sinteticamente, eis alguns pontos que me parecem essenciais e têm de estar bem presentes na abordagem das reformas necessárias:

1. O fogo estará sempre presente nos nossos ecossistemas, por maioria de razão nas nossas florestas. Invernos chuvosos fazem crescer os matos. Verões secos criam as condições para a rápida propagação dos incêndios. É assim aqui e nas regiões com condições climáticas semelhantes, como a Califórnia ou a Austrália. A faixa do território onde isso é mais evidente são as serras do centro e norte do país. Viver com o fogo, controlá-lo dentro de limites aceitáveis, implica por isso ser capaz de diminuir a carga combustível das matas, o que as populações faziam naturalmente quando lá viviam e ainda havia alguma agricultura. Hoje isso pertence a um passado que não regressará.

2. As regiões mais desertificadas e mais martirizadas pelos fogos são, por regra, aquelas onde a agricultura de subsistência era mais pobre. “O território de Vila de Rei não tem aptidão para a agricultura, é pedras”, costumava dizer o escritor José Cardoso Pires, nascido na freguesia de São João do Peso, como se recordava no Público. Pensar que se pode regressar à miséria de outros tempos, quando a terra mal dava para matar a fome e era preciso trabalhar de sol a sol é pior do que uma ilusão, é uma crueldade.

3. A chamada limpeza das matas é, como já defendia Gonçalo Ribeiro Telles em 2003, um mito. De resto, quem ia fazê-lo? Em muitas daquelas aldeias não vive ninguém com menos de 70 anos, sendo que nalgumas daquelas freguesias o maior empregador é muitas vezes o lar de idosos. Pior: as matas, mesmo que não ardessem com fatal regularidade, muito dificilmente, no quadro actual, gerariam recursos suficientes para suportar os custos da limpeza.

4. Cada região tem problemas diferentes e vive realidades muito específicas. A boa solução legislativa para Mação pode não servir em São Pedro do Sul, o bom modelo de ordenamento para Pedrógão quase de certeza que não faz nenhum sentido em Tondela. Pensar que se encontram soluções legislativas em São Bento muitas vezes só agrava os bloqueios, faz aumentar a burocracia e limita a iniciativa dos poucos “homens bons” com genica que ainda vão vivendo naquelas terras ou se interessam por elas.

5. Não haverá soluções duradouras que dependam eternamente de subsídios públicos. Provavelmente nem haverá solução transitórias. Para recuperar o mundo rural tem de voltar a existir uma economia rural sustentável. O papel do Estado não pode ser apenas o de maior empregador em muitos concelhos, mas sim o de encontrar e dar os incentivos certos. Não é possível pagar para as pessoas não continuarem a abandonar as aldeias, é preciso que elas encontrem motivos para lá continuarem. Há algum trabalho de qualidade feito pela Unidade de Missão para a Valorização do Interior para os concelhos tocados pelos fogos de Pedrógão Grande e Góis, mas é apenas um começo. Algo no entanto é certo: as boas decisões terão de ser tomadas localmente, o mais possível livres de baias reguladoras desenhadas no Terreiro do Paço.

6. Ao contrário da mitologia urbana, todas as fileiras florestais são necessárias para, ao mesmo tempo, suportar uma economia rural e voltar a ter uma floresta mais produtiva, mais diversificada e mais segmentada, logo mais fácil de proteger dos fogos catastróficos. Isso inclui naturalmente o eucalipto e o pinheiro, as árvores que agora todos parecem detestar. Como inclui outras espécies de crescimento mais lento, assim como a exploração de pastagens. Se houver pouca intervenção, se as regras se complicarem (e já se complicaram com a famosa “reforma florestal”), o que acontecerá em boa parte das áreas ardidas é que os eucaliptos rebentarão de toiça, os pinheiros germinarão a partir das sementes que foram espalhadas, mas tudo isso sucederá de forma desordenada, menos produtiva e mais difícil de manter. Pior: onde não existir poder de regeneração podem entrar espécies invasoras, como as acácias, e aí o desastre será ainda maior.

O que resulta destas notas é um Portugal diferente, menos entornado para o litoral, e também menos centrado nos centros urbanos do interior e nas sedes de concelho. É um Portugal que necessita de uma nova ruralidade, de que alguns académicos já falam mas que em muitos aspectos nos surge ainda como utópica.

Com toda a franqueza não posso estar optimista. E li, vi e ouvi as reportagens dos últimos dias. Vi desgosto e desespero, mas percebi também que naquelas terras dificilmente se reencontrará a energia necessária para uma nova vida. Com quantas pessoas falaram os repórteres que tivessem menos de 60, 70, 80 anos? Quantas encontraram em aldeias relativamente extensas mas onde a maioria das casas está vazia? Quantos quilómetros de estrada, por vezes estrada muito bem tratada, correm hoje por entre paisagens negras até onde a vista alcança?

Sou um lisboeta, filho de lisboetas, mas que, mesmo tendo percorrido muitas vezes o país em todas as direcções, indo mesmo aos lugares mais remotos, não tenho muito a propor, mas há quem esteja no terreno e faça propostas construtivas (aqui e aqui).

No fundo só tenho uma convicção: não há uma solução mágica para recuperar o nosso mundo rural, e as soluções que existirem têm de ser procuradas localmente. E quanto menos Lisboa complicar, quanto menos serviços públicos centrais estiverem envolvidos, melhor.

Post Scriptum. No meio de todas as decisões do Governo que pouco ou nada me dizem, e que pouco ou nada adiantarão (como já procurei explicar a propósito da pomposa “reforma da floresta”), há uma nomeação que é um verdadeiro sinal de que algo pode mudar: a de Tiago Oliveira para a Estrutura de Missão para a instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. É ao mesmo tempo um investigador (fez as suas provas de doutoramento no passado mês de Julho, e eu pude estar lá a assistir), com pensamento próprio e alguém com uma imensa experiência de terreno. Conheci-o, se a memória não me falha, no feroz Verão de 2003, quando um dia me entrou pelo gabinete, ainda coberto de pó e cinza, para me contar o que se estava a passar. Sabia do que falava, até porque nesse Verão fora um dos membros da brigada aerotransportada que, ao intervir num fogo na região da Chamusca, vira morrerem dois dos seus membros, ambos sapadores chilenos. Desde então que tenho mantido contacto regular com Tiago Oliveira e, este Verão, falei-lhe muitas vezes, e muitas vezes ele me disse, com dias de antecedência, o que ia acontecer com alguns dos grandes fogos que varreram o país. Assim como me identificou o que estava a correr mal no combate e no rescaldo.

Não deixa de ser irónico que Tiago Oliveira tenha sido, com José Miguel Cardoso Pereira, um dos autores da Proposta Técnica para o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios elaborada em 2005 e que foi, no essencial, desconsiderado pelo governo de então, dirigido por José Sócrates e que tinha como ministro da Administração Interna António Costa. Tenho pois a esperança de que agora se possam recuperar muitas das boas propostas de então e continuam actuais.

Sem surpresa, pois nunca nos surpreendemos como as reacções dos caniches de Pavlov, os bloquistas de serviço já trataram de desconsiderar esta nomeação por Tiago Oliveira trabalhar para a Navigator, da mesma forma que a Liga dos Bombeiros também já mostrou incómodo.

Fala-se de celuloses e eles salivam. Na verdade a experiência profissional de Tiago Oliveira na prevenção e combate aos incêndios florestais numa empresa que vive precisamente dos recursos da floresta qualifica-o de forma especial para o lugar que vai ocupar. Mas que interessa isso a quem vive na bolha de Lisboa e se alimenta dos preconceitos e mitos que alimentam as conversas das noites no Lux?

Fahrenheit 451: não é só a floresta que arde, é também o conhecimento científico