Quando, terça-feira, abri o Observador e vi o título de um artigo de Inês Relvas, “Já ouviram falar do Dia Global da Dignidade?”, pensei que ele lidasse com a maneira catastrófica, em actos e palavras, como o Governo tratou os fogos que varreram o norte e o centro do país e que provocaram, até agora, 42 mortos. Depois fui ler o artigo e descobri que há mesmo um Dia Global da Dignidade e que era esse, de facto, o assunto. Mas a minha confusão é perdoável. Tanta indignidade (a palavra é meditada) política e humana como a que se observou por estes dias é rara de ver e, de qualquer maneira, ninguém fala de outra coisa. Ontem ao final da tarde, sentado numa esplanada durante um quarto de hora, não mais, ouvi três conversas sobre os fogos. Um homem dizia à mulher que era preciso mais vigilância florestal, uma senhora dizia ao telemóvel que tinha gostado do discurso de Marcelo (eu também) e dois amigos confessavam um ao outro já não me lembro o quê.
Já toda a gente disse o que havia a dizer das palavras da ex-ministra da resiliência e do ainda secretário de Estado especialista em pró-actividade. Para eles, no essencial, a culpa reside nas alterações climáticas e nos maus hábitos da populaça. O grotesco dos propósitos não se explica facilmente. Face ao número das mortes e ao inominável horror delas, face às imagens que todos vimos e face ao facto de se tratar de uma repetição do que se havia passado há quatro meses em Pedrógão, a proverbial imunidade dos políticos à realidade e os tradicionais costumes partidários não explicam tudo. Não se concebe o que se passou, nem sobretudo a reacção ao que se passou, sob governos anteriores. Eu, pelo menos, não concebo.
Mas há talvez uma explicação para o grotesco. António Costa ocupa simultaneamente dois cargos. Em primeiro lugar, é sócio-gerente da empresa Geringonça, destinada a perpétuá-lo no poder e que no início o fez ascender a uma posição para a qual não havia sido eleito. Em segundo lugar, é primeiro-ministro de Portugal. A ordem aqui não é arbitrária: indica uma precedência. A actividade desenvolvida na sua primeira ocupação ocupa-lhe a maior parte do tempo. Conversas, negociações e coisas assim são o pão nosso de cada dia. Isso interessa-lhe, deve dar-lhe prazer, e arranjou uma fama de hábil na matéria. Para o segundo cargo, o de primeiro-ministro, ele não tem a mesma vocação, nem, provavelmente, o mesmo interesse. Aí é deixar as coisas irem andando. Confiando nas virtudes exibidas no cargo de sócio-gerente, crê que elas bastam para ser primeiro-ministro. Erro seu, erro absoluto seu. Não bastam nem são o essencial. Provam-no a maneira como reage às dificuldades, o que diz nessas situações e muitas coisas mais. Não está bem na pele, está pessimamente, com consequências catastróficas e criminosas. Não tem competência nem talento. E isso, fatalmente, comunica-se aos subordinados, que, por arrasto, são também funcionários da empresa Geringonça.
Marcelo, o Presidente da República, já certamente percebeu isso há muito, mas agora achou que, dado o mal espalhado pelo país, era demais e ordenou a Costa que demitisse a ministra que ele queria guardar. O fantástico vazio de autoridade e de ânimo necessário para que isso pudesse acontecer a um primeiro-ministro é a demonstração mais clara da consciência que ele tem da sua incompetência. Infelizmente, sobra-lhe o alento do seu outro cargo. E que não se duvide que a confiança nas qualidades que nele exibe lhe vai permitir continuar na sua senda, fazendo de conta que as características necessárias a um primeiro-ministro não contam. O que interessa é manter cordatos os outros sócios e satisfazer a clientela. O vazio vai continuar coberto de habilidade.
Nesta toda imensa tristeza, o Presidente da República falou ao país e falou pelo país. O discurso foi justíssimo e as pessoas ouviram não só o que desejavam ouvir, mas também o que precisavam de ouvir. Falou com genuína atenção ao sofrimento das pessoas, contrastando com a inenarrável grosseria com que o Governo se portou. Marcelo, com todos os seus defeitos, não despreza a populaça e, portanto, sabe falar com ela e por ela. Não é, ao contrário do que ele diz e se calhar pensa, uma questão de afectos: é uma questão de compreensão, uma compreensão que falta por inteiro ao outro e que permite a Marcelo o contacto com a realidade.
Dito de outra maneira: Marcelo sabe pôr-se no lugar do outro, Costa não. Ou, se sabe, é apenas instrumentalmente, para imaginar os avanços e recuos que, nas célebres negociações, tem de encenar. Tudo isso servirá muito bem nas conversas com Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa, mas não serve de nada, rigorosamente de nada, na comunicação com o comum das pessoas, que não vive no mundo dele nem dos outros dois. Na linguagem corrente do jornalismo, tem-se dito que Constança Urbano de Sousa ou Azeredo Lopes foram “erros de casting”. Foram, pois foram. Mas o maior erro de casting é indisputavelmente António Costa.
A seguir a Pedrógão Grande, escrevi aqui um artigo intitulado “Um homem muito perigoso”. Peço desculpa pela má-educação de me citar: “Face a uma catástrofe, tudo aquilo de que Costa é capaz é de recorrer a toda a espécie de malabarismos que lhe granjearam a dúbia fama de político excepcionalmente habilidoso. Só que, confrontado com uma realidade não moldável aos exercícios circenses a que nos habituou e que tanta admiração provocam nos aficionados da política, a tal habilidade revelou-se aquilo que na sua essência radicalmente é: um puro jogo destinado a preservar o poder sem qualquer princípio que respeite verdadeiramente ao bem público. Quer dizer: uma coisa oca produzida pelo vazio”. Tudo o que se passou serve de confirmação destes propósitos pouco originais. António Costa é, de facto, um homem muito perigoso. O incalculável sofrimento humano destes dias não deixa margem para dúvidas.