Sem querer abusar da minha generosidade, aí vai uma pergunta: conhecem Patricia Petibon? Se não conhecem, eu digo quem é e explico logo a seguir as razões pelas quais é absolutamente necessário que a conheçam, a ouçam e a vejam. Ao vivo, de preferência, é claro, ou, à falta disso, nessa coisa magnífica chamada youtube. Lava os ouvidos e lava os olhos.
Este meu arriscado zelo, o meu momento “serviço público”, tem uma causa imediata: o ter assistido a um recital dela em Paris, na sala Pleyel, a 29 de Novembro. Depois de vinte dias de trabalhos insanos na bela cidade, bem que merecia esse prazer. Já a tinha visto, de resto, várias vezes, mas desta vez decidi-me mesmo a escrever. Os tempos que se avizinham são sombrios, e convém de vez em quando falar da felicidade e de boas companhias.
Patricia Petibon canta coisas muito diferentes, do barroco à Lulu de Alban Berg, passando, graças a Deus, por Mozart, muito Mozart. E canta-as com a expressividade que só um formidável talento permite. Uma expressividade que é o resultado do acordo de uma personalidade com o texto musical. E de uma liberdade que só esse acordo permite.
Liberdade é aqui uma palavra fundamental. É algo que se sente ao vivo e nos discos. Ouçam o fabuloso “Tiger!” de Zaide, uma ópera inacabada de Mozart, no disco Amoureuses, ou “Tornami a vagheggiar”, da Alcina de Haendel, no disco Rosso. A liberdade reside na capacidade de apropriação da obra, só ela permitindo uma verdadeira expressividade e a imposição de sentimentos (ou afectos, ou paixões, ou emoções, como quiserem) à música. Raiva, prazer e melancolia (nome de um disco dela dedicado à música espanhola) aparecem, como que magicamente, com uma forma perfeita.
Ao vivo, é claro, isso ainda é mais notório. Porque a expressividade musical se desdobra nela numa expressividade visual que é um prazer de ver. Os riscos que corre no capítulo só são vencidos por uma formidável inteligência e sensibilidade. E um sentido de humor que aparece sempre na altura certa e que contribui grandemente à festa (uso a palavra apropriadamente) que é ouvi-la. Pessoalmente, até gosto da artificialidade inerente à posição do espectador numa sala de concerto. Entra-se, como alguém notou, no interior de uma moldura que nos isola do resto do mundo. Muitas pessoas dão-se mal com isso, como o prova a quantidade de tosses nervosas que costuma habitar esses veneráveis lugares e que são obviamente quase sempre sinal de dificuldade de adaptação e de concentração na música. Mas com Patricia Petibon sai-se em parte disso, e ainda é melhor. A moldura não é rompida, mas torna-se, por assim dizer, mais flexível, e ela, sem um só momento de mau gosto, com um acerto infalível, dá-lhe a forma que lhe apetece. De uma certa maneira, um recital de Patricia Petibon é também o espectáculo das formas sucessivas que ela dá a essa moldura.
É a altura de voltar ao último recital da sala Pleyel, que partiu do seu último disco, La belle excentrique. A música foi quase exclusivamente música francesa do século XX: Satie, muito Satie, que lhe vai às mil maravilhas, Fauré, Reinaldo Hahn, Poulenc e, uma excelente surpresa, Manuel Rosenthal. E Leo Ferré. Ao piano, a sua pianista de sempre, a óptima Susan Manoff, um acordeonista muito bom, David Venitucci (é surpreendente como o acordeão é capaz de sonoridades sempre inesperadas) e alguns outros acompanhantes, entre os quais um velho amigo dela, o encenador Olivier Py, que também cantou.
É preciso passar por cima de muita coisa. Por exemplo, da poesia óptima, de Verlaine a Apollinaire, que foi cantada, e da justeza de Petibon em relação ao espírito do texto. E por cima das tais paixões que a personalidade do intérprete projecta na interpretação e que lhe dão sentido. O que fica mais é a extraordinária capacidade de modificar a moldura do recital. Quer fechando-a na intimidade, como com “On s’aimera”, de Ferré (a versão do disco é melhor, porque é só ela que canta; na sala Pleyel, cantou-a em parceria com Olivier Py – foi excelente, mas no disco é, quase literalente, de morrer de amor); quer abrindo-a ao hilariante, como com “Allons-y, Chochotte!”, de Satie. Com todos os graus intermédios possíveis.
Há uma espécie de soberania em Patricia Petibon. Só os seres soberanos têm a liberdade que ela tem. Essa maneira de liberdade que se manifesta na capacidade de dar uma forma nova, um sentido inesperado, a coisas já existentes, de dar a ver a novidade no que faz parte da tradição, o móvel no fixo, a paixão na fórmula codificada. Os seres soberanos são os bons seres.
No fim, eu e a minha velha amiga Danièle fomos jantar num restaurante próximo, onde gastei os meus últimos tostões parisienses e acabei de hipotecar os meus tostões portuenses por um bom tempo a vir. Estávamos a falar do recital e de como a música pode transportar felicidade quando ela se deu conta (eu não, que estava de costas) que os músicos e Patricia Petibon (pelo menos, ela julgou vê-la) passaram para ir jantar na sala ao lado. Ainda tive vontade de a ir felicitar, mas o danado do medo do ridículo tende a impedir as boas e nobres acções.
De facto, cheguei uma vez a falar com ela, no fim de um recital da Gulbenkian, há uns anos atrás. Guardei-me para o fim da fila das pessoas que com ela se foram encontrar. Deu os mais benevolentes conselhos a jovens que queriam ser cantoras, advertindo-as da dificuldade da profissão. E a outros disse não sei o quê. Quando chegou a minha vez, disse-lhe eu uns disparates quaisquer, muito elogiosos. Nunca devo ter vencido tão heroicamente a minha timidez. E, de qualquer maneira, saí dos cinco minutos de conversa com um grande sentimento de felicidade. Pelo menos não me tinha estatelado no chão à primeira troca de palavras. Um feito tão mais apreciável quanto um ser humano não se encontra normalmente disposto à contemplação de tanta beleza, talento e gentileza juntas numa só pessoa.
Uma coisa lembro-me certamente de lhe ter dito. Que gostaria imenso de a entrevistar. Coisa que ela benevolamente aceitou para futuro incerto. Por acaso, tenho a certeza de ter várias perguntas certas para lhe fazer. Sobre a natureza da expressividade em música. Sobre a importância da personalidade do intérprete na realização da obra musical. E por aí adiante. Com muita sorte minha, ainda um dia consigo.
Mas isso é mesmo secundário. Se este artigo faz sentido é para pedir que a ouçam. Nestes dias tristes, falta-nos boa companhia. E Patricia Petibon é das melhores companhias que se pode desejar. Podem começar pelo último disco. Ou com o vídeo, já com uns anos, de “Les filles de Cadix”, de Delibes. Enfim, podem começar por qualquer lado. E agradecer a minha generosidade, agradecê-la muito.