Sem querer abusar da minha generosidade, aí vai uma pergunta: conhecem Patricia Petibon? Se não conhecem, eu digo quem é e explico logo a seguir as razões pelas quais é absolutamente necessário que a conheçam, a ouçam e a vejam. Ao vivo, de preferência, é claro, ou, à falta disso, nessa coisa magnífica chamada youtube. Lava os ouvidos e lava os olhos.

Este meu arriscado zelo, o meu momento “serviço público”, tem uma causa imediata: o ter assistido a um recital dela em Paris, na sala Pleyel, a 29 de Novembro. Depois de vinte dias de trabalhos insanos na bela cidade, bem que merecia esse prazer. Já a tinha visto, de resto, várias vezes, mas desta vez decidi-me mesmo a escrever. Os tempos que se avizinham são sombrios, e convém de vez em quando falar da felicidade e de boas companhias.

Singers Patricia Petibon featuring Ginevra performs Georg Friedrich Haendel's opera 'Ariodante' directed by Andrea Marcon and staged by Richard Jones during their last rehearsal as part of the Aix International Festival of Lyric Art at the Archeveche Theatre in the French southeastern city of Aix-en-Provence on June 28, 2014. AFP PHOTO / BERTRAND LANGLOIS        (Photo credit should read BERTRAND LANGLOIS/AFP/Getty Images)

Patricia Petibon canta coisas muito diferentes, do barroco à Lulu de Alban Berg, passando, graças a Deus, por Mozart, muito Mozart. E canta-as com a expressividade que só um formidável talento permite. Uma expressividade que é o resultado do acordo de uma personalidade com o texto musical. E de uma liberdade que só esse acordo permite.

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Liberdade é aqui uma palavra fundamental. É algo que se sente ao vivo e nos discos. Ouçam o fabuloso “Tiger!” de Zaide, uma ópera inacabada de Mozart, no disco Amoureuses, ou “Tornami a vagheggiar”, da Alcina de Haendel, no disco Rosso. A liberdade reside na capacidade de apropriação da obra, só ela permitindo uma verdadeira expressividade e a imposição de sentimentos (ou afectos, ou paixões, ou emoções, como quiserem) à música. Raiva, prazer e melancolia (nome de um disco dela dedicado à música espanhola) aparecem, como que magicamente, com uma forma perfeita.

Ao vivo, é claro, isso ainda é mais notório. Porque a expressividade musical se desdobra nela numa expressividade visual que é um prazer de ver. Os riscos que corre no capítulo só são vencidos por uma formidável inteligência e sensibilidade. E um sentido de humor que aparece sempre na altura certa e que contribui grandemente à festa (uso a palavra apropriadamente) que é ouvi-la. Pessoalmente, até gosto da artificialidade inerente à posição do espectador numa sala de concerto. Entra-se, como alguém notou, no interior de uma moldura que nos isola do resto do mundo. Muitas pessoas dão-se mal com isso, como o prova a quantidade de tosses nervosas que costuma habitar esses veneráveis lugares e que são obviamente quase sempre sinal de dificuldade de adaptação e de concentração na música. Mas com Patricia Petibon sai-se em parte disso, e ainda é melhor. A moldura não é rompida, mas torna-se, por assim dizer, mais flexível, e ela, sem um só momento de mau gosto, com um acerto infalível, dá-lhe a forma que lhe apetece. De uma certa maneira, um recital de Patricia Petibon é também o espectáculo das formas sucessivas que ela dá a essa moldura.

French singer Patricia Petibon performs

É a altura de voltar ao último recital da sala Pleyel, que partiu do seu último disco, La belle excentrique. A música foi quase exclusivamente música francesa do século XX: Satie, muito Satie, que lhe vai às mil maravilhas, Fauré, Reinaldo Hahn, Poulenc e, uma excelente surpresa, Manuel Rosenthal. E Leo Ferré. Ao piano, a sua pianista de sempre, a óptima Susan Manoff, um acordeonista muito bom, David Venitucci (é surpreendente como o acordeão é capaz de sonoridades sempre inesperadas) e alguns outros acompanhantes, entre os quais um velho amigo dela, o encenador Olivier Py, que também cantou.

É preciso passar por cima de muita coisa. Por exemplo, da poesia óptima, de Verlaine a Apollinaire, que foi cantada, e da justeza de Petibon em relação ao espírito do texto. E por cima das tais paixões que a personalidade do intérprete projecta na interpretação e que lhe dão sentido. O que fica mais é a extraordinária capacidade de modificar a moldura do recital. Quer fechando-a na intimidade, como com “On s’aimera”, de Ferré (a versão do disco é melhor, porque é só ela que canta; na sala Pleyel, cantou-a em parceria com Olivier Py – foi excelente, mas no disco é, quase literalente, de morrer de amor); quer abrindo-a ao hilariante, como com “Allons-y, Chochotte!”, de Satie. Com todos os graus intermédios possíveis.

Há uma espécie de soberania em Patricia Petibon. Só os seres soberanos têm a liberdade que ela tem. Essa maneira de liberdade que se manifesta na capacidade de dar uma forma nova, um sentido inesperado, a coisas já existentes, de dar a ver a novidade no que faz parte da tradição, o móvel no fixo, a paixão na fórmula codificada.  Os seres soberanos são os bons seres.

No fim, eu e a minha velha amiga Danièle fomos jantar num restaurante próximo, onde gastei os meus últimos tostões parisienses e acabei de hipotecar os meus tostões portuenses por um bom tempo a vir. Estávamos a falar do recital e de como a música pode transportar felicidade quando ela se deu conta (eu não, que estava de costas) que os músicos e Patricia Petibon (pelo menos, ela julgou vê-la) passaram para ir jantar na sala ao lado. Ainda tive vontade de a ir felicitar, mas o danado do medo do ridículo tende a impedir as boas e nobres acções.

De facto, cheguei uma vez a falar com ela, no fim de um recital da Gulbenkian, há uns anos atrás. Guardei-me para o fim da fila das pessoas que com ela se foram encontrar. Deu os mais benevolentes conselhos a jovens que queriam ser cantoras, advertindo-as da dificuldade da profissão. E a outros disse não sei o quê. Quando chegou a minha vez, disse-lhe eu uns disparates quaisquer, muito elogiosos. Nunca devo ter vencido tão heroicamente a minha timidez. E, de qualquer maneira, saí dos cinco minutos de conversa com um grande sentimento de felicidade. Pelo menos não me tinha estatelado no chão à primeira troca de palavras. Um feito tão mais apreciável quanto um ser humano não se encontra normalmente disposto à contemplação de tanta beleza, talento e gentileza juntas numa só pessoa.

Uma coisa lembro-me certamente de lhe ter dito. Que gostaria imenso de a entrevistar. Coisa que ela benevolamente aceitou para futuro incerto. Por acaso, tenho a certeza de ter várias perguntas certas para lhe fazer. Sobre a natureza da expressividade em música. Sobre a importância da personalidade do intérprete na realização da obra musical. E por aí adiante. Com muita sorte minha, ainda um dia consigo.

Mas isso é mesmo secundário. Se este artigo faz sentido é para pedir que a ouçam. Nestes dias tristes, falta-nos boa companhia. E Patricia Petibon é das melhores companhias que se pode desejar. Podem começar pelo último disco. Ou com o vídeo, já com uns anos, de “Les filles de Cadix”, de Delibes. Enfim, podem começar por qualquer lado. E agradecer a minha generosidade, agradecê-la muito.