1. Deem-me uma manhã e também renasço. Manhã é vida. Os dois fortíssimos recomeços de que é feita – o do dia e o da própria vida – fazem dela um espaço de tempo próprio, gloriosamente único. Sim, deem-me uma manhã mas uma manhã toda, a manhã intacta, a manhã inteira, para recomeçar. Como neste Natal que também é promessa de recomeço mas este ano parece que quase levou sumiço. Não foi fácil dar com ele, (talvez nos corações?), não vi presépios, nem cartões, nem alusões, nem sequer ao espírito de família, a não ser nos anúncios. Passou de moda, foi uma época, saiu dos radares? Assim parece que nos surge, substituído, em clima de aparente anuência, pela obrigatoriedade da “prenda” e confinado ao “onde comer”. Talvez tenha de facto chegado uma espécie de convenção global de arredar todos os sinais exteriores da Natividade, empurrando-a para o espaço privado dos lares e autorizando-lhe esse abrigo íntimo como seu hoje único porto e lugar de resistência. Não sei se se pode falar de outra “era” mas sei que nunca pensei que este Natal sem “objeto” se pudesse ter imposto assim, de mansinho, sem resistência ou espanto ou pasmo. Tempos estranhos de tão descomprometidos com a matriz daquilo que nos foi berço e nos é, portugueses e europeus, pertença histórica e civilizacional.
As manhãs deste Natal foram frias, longas, enevoadas. Este ano ainda mais, escondidas dentro da neblina, um véu tão espesso que levei os dias a desconfiar que nunca mais algum deus o levantaria. Mas foi pela neblina das manhãs que fui andando a pé, supremo luxo, pelas ruas festivas da minha morada oestina, ruelas e vielas enfeitadas e azafamadas de gente. Dando as boas festas e desejando-lhes Santo Natal mas aqui, em nome próprio, todos nos conhecemos pelo nome ou quase, quase. A começar nesse “grupo” humano tão particular porque não é igual a nenhum outro que são os vizinhos, os próximos e os das redondezas… e que só verdadeiramente valorizamos e amamos na lonjura das cidades. Mas também no “Machado”, de refinada doçaria; no mercado e no supermercado; na tabacaria; na banca das flores da Maria de Jesus; no Vivaci com a sua luz natural e a sua dimensão humana, são só dois lances de escadas rolantes; no ginásio, na bomba da gasolina, nalguma loja; e nos cafés, claro, onde sem falta e com gosto se entra pela bica, a meio da manhã. Enfim, nisto tudo, falo quase, quase, de uma família, só ela tem este poder agregador, capaz de derreter a quadra em aconchego e transformando-a numa estação onde de certeza me será menos melancólico apear-me. Raul Brandão dizia e eu estou sempre a lembrar-me disso que “trazia consigo uma camada de mortos, só não sabia até que profundidade” – mas eu sei até que profundidade. E por isso, mesmo que a manhã seja vida e o Natal recomeço, carregar mortos pesa mais no frio enevoado da noite de 24 de dezembro. Há que esperar, enquanto se tenta a impossível sintonia entre a alegria do presépio e o luto da ausência.
Sabendo que só horas depois, mas horas como se fossem anos, no recomeço de mais um dia e de mais neblinas, voltará a ser manhã e a ocorrer o seu milagre, com a vida a puxar-me pela manga do casaco, a fazer-me andar.
Tenho sorte em ter compreendido muito cedo que podia contar com este, como dizer? combustível. Tão forte que finjo que acredito que as coisas ainda são possíveis e o mundo habitável, fazendo de conta que não vejo que uma grande parte foi já tingida pelo sofrimento. E o que não foi, parece hoje cortado ao meio pelo ressentimento, contaminado pela má fé, adulterado pelo ranço das coisas que talharam. Manhã cedo nega-se tudo isto, acredita-se nos grandes verbos e nos grandes sentimentos e sim, quem não acredita, pelas auroras, nuns e noutros?
2. E no entanto… quantos e impressivos sinais de vida não me rodeiam.
Marcelino Sambé foi um deles, explosivo de energia e génio. Depois de o ver dançar há dias, com a Companhia Nacional de Bailado, uma mão amiga perguntou-me se “gostaria de o conhecer”. Gostaria. Nos extraordinários bastidores do S. Carlos, na companhia de um pequeno grupo de “happy few”, conheço um “pássaro de fogo”, resoluto e sorridente. Filho de um guineense e de mãe portuguesa, e vindo do que politicamente se chama uma “zona deprimida” dos arredores da capital, dança desde 2012 no Royal Ballet. A companhia de bailado britânica, fez dele, aos vinte e um anos, um adulto responsável e educado. Por sua iniciativa fala-me em “disciplina”, sublinha o “trabalho”, evoca o “mérito” na sua passagem de etapas, aplaude a filosofia da companhia, “não deve haver melhor escola no mundo”. Marcelino aprendeu e apreendeu tudo isto.
O que lhe permite sonhar com um destino. Tem razão: vai tê-lo.
Mas em que outros bastidores nacionais eu ouviria, com este convicto orgulho, alguém falar-me de “disciplina”, “trabalho”, “mérito”, como “as” ferramentas indispensáveis e justamente assimiladas como “indispensáveis”?
Encontro aprazado para fevereiro, no Royal Ballet, onde haverá nova estreia para esta estrela e “eu mostro-lhes o ‘back stage’ da Companhia, os do Royal Ballet são muito interessante de ver”.
Who doubts?
3. Não se pode acabar o ano de pior maneira nem começar um novo com tão maus presságios. Mas hoje não evoco tanto a desgraça – não há outro termo – da morte de um jovem inocente às mãos da incúria e a da irresponsabilidade profissional num hospital público, ou do inconcebível – não acho melhor adjetivo – caso do Banif.
Falo daquilo em que se transformou o debate público entre nós e sim, não é de hoje, mas a sua irracionalidade, má-fé e leviandade conseguem piorar dia a dia e hora a hora.
Paulo Macedo e o anterior governo foram logo, nos “media” e fora deles, praticamente acusados de ter morto o doente falecido em S. José, antes de se ter passado expeditamente a um medonho passa culpas que encheu dias e ecrãs num desvario de irracionalidade. Mas os media e a rua – que hoje pouco se distinguem, de resto – já a isso nos habituaram há muito.
O mesmo nunca porém poderia ou deveria ocorrer com gente de altas responsabilidades cívicas e políticas. Dois exemplos, escolhidos entre uma vastíssima plateia de demagógicas reações:
António Correia de Campos, ex-titular da Saúde, no seu último escrito, deixa-nos uma pergunta-“pérola” por entre algumas questões onde vai encaixando as suas acusações contra as “maldades” do governo anterior. Eis a pérola: (…) “que assistíssemos em silêncio à perda de vidas por continuadas políticas de descuido e regateio de pagamento decente nas urgências hospitalares?” (Público, 28 dezembro)
Quando nos lembramos que Correia de Campos foi despedido por José Sócrates (na altura, lamentei-o publicamente) por estar a ser triturado pelos “interesses” corporativos da área que tutelava, este queixume do ex-ministro é ainda mais revelador do aproveitamento político que escolheu fazer, sobre a morte ocorrida num hospital que aliás conhece muito bem.
Segundo exemplo: Marcelo Rebelo de Sousa, após rivalizar com La Palisse ao dizer que “uma das suas prioridades era a Saúde” e com isso fazendo de nós parvos (para quem não é?) enredou-se numa soma de considerandos tão demagógicos que se fica de boca aberta. Há mais cómodo, mais fácil, mais popular, do que evocar os “cortes na Saúde” num país como o nosso, onde tal acusação vende sempre? Não há. O que dá que pensar é que Marcelo também tenha ido por aí, passando intencionalmente tão ao lado das verdadeiras lições deste tristíssimo caso. E do que o caso (lhe) forneceria de inspiração e argumentação para separar o trigo do joio. E até para no ensejo da sua eventual ocupação do Palácio de Belém, prometer patrocinar aquilo de que precisamos como pão para a boca: um grande, participado e nacional debate público sobre o futuro da Saúde. Isso sim, teria sido fazer pedagogia politica. Mas deu-lhe mais jeito – voto oblige – substituir pedagogia por demagogia.
Dá que pensar, sim. É o mínimo que se pode dizer.