A primeira ferida que a crise na Ucrânia abriu na Europa foi política, a segunda e mais profunda para a União Europeia, foi a energia. A ameaça constante e imprevisível da Rússia poder fechar as torneiras do gás natural e deixar pelo menos quatro países do espaço comunitário a zeros está a fazer com que os líderes europeus concertem posições não só para diminuir a dependência energética externa dos 28, mas também para um futuro mais sustentável dos Estados-membros. Donald Tusk, primeiro-ministro da Polónia, defende uma União Europeia da Energia e a sua posição tem cada vez mais apoiantes em Bruxelas. Mas Portugal também quer ser alternativa.

Esta segunda-feira em Berlim, Günther Oettinger, comissário europeu da Energia, sentou-se à mesa com Alexander Novak, ministro russo da Energia , para começar as negociações sobre o pagamento das dívidas da Ucrânia à Gazprom – espera-se que Alexey Miller, presidente do conselho de administração da Gazprom, também esteja presente. O objetivo foi tentar retomar a normalidade do abastecimento de gás na região. Dois dias depois, foi Durão Barroso a escrever a Putin sobre o tema.

Mas ao negociar com os russos, a Comissão tem outras preocupações em mente. Desde logo, uma mais doméstica. O comissário da Energia é alemão e conhece a dependência do seu próprio país em relação à Gazprom – em 2012 a Alemanha comprou mais de 36% do seu gás à Gazprom e é o maior cliente da mega-empresa russa. Conhece também as consequências para os restantes Estados-membros: Estónia, Finlândia, Letónia e Lituânia dependem inteiramente do gás russo para funcionar e na Eslováquia 100% gás para uso doméstico também vem de lá.

No entanto, Oettinger não pode negociar directamente com os russos sobre o fornecimento de gás a todos os países europeus. Neste momento, cada país tem acordos bilaterais com a Gazprom e, consoante a sua situação financeira e a sua procura, um preço diferente. Para terminar com estas diferenças – e defender o interesse nacional do seu país – Donald Tusk sugeriu em abril, num artigo no Financial Times, a criação de uma União Europeia da Energia que faça frente em bloco à dependência energética face à Rússia.

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“Independentemente de como o conflito com a Ucrânia se venha a desenvolver, uma lição é clara: dependência energética excessiva da Rússia torna a Europa fraca” escreveu Donald Tusk

Esta ideia tem vindo a ganhar adeptos em Bruxelas, com Michel Barnier, comissário europeu do Mercado Interno, a vir reforçar na sexta-feira esta possibilidade. “Precisamos de uma União Europeia da Energia para retomarmos a nossa independência energética e a nossa segurança, assim como a competitividade das nossas indústrias” afirmou num seminário com banqueiros em Varsóvia. Também o primeiro-ministro romeno, Victor Ponta é favorável a esta solução, apoiando a iniciativa de Tusk.

Mas algumas das propostas do primeiro-ministro polaco são polémicas, como a utilização livre do gás de xisto – um tipo de gás natural que se encontra entre rochas em profundidade, em vez de se concentrar em grandes poços. O gás de xisto não é consensual na Europa, não havendo para já autorização para a sua exploração nalguns países devido à sua imprevisibilidade e impacto no meio ambiente.

Rota do gás pela Península Ibérica pode ser alternativa

Quando a crise rebentou na Ucrânia, a Entidade Reguladora do Setor Energético disse que a situação de instabilidade não teria reflexos nem no preço nem nos fornecimentos de gás natural a Portugal, já que as nossas fontes desta energia provêem de “um gasoduto, a partir de Espanha, proveniente da Argélia, e por via marítima, através de Sines, com origem na Nigéria”.

Uma alternativa que o ministro Jorge Moreira da Silva afirmou na semana passada ser também viável para os restantes países da União Europeia, no conselho informal de ministros da Energia da União Europeia, em Atenas. “A Península Ibérica pode substituir 9% de todo o gás que a União Europeia importa da Rússia. Se formos ainda mais longe na construção de novas interligações, com os atuais sete terminais, poderemos substituir 20% de todo o gás importado da Rússia” disse o ministro.

“Se a União Europeia investir nas interligações, o terminal de gás natural liquefeito de Sines pode substituir 4% de todas as importações de gás originárias da Rússia”, afirma o ministro Jorge Moreira da Silva

A sugestão apresentada em Atenas propõe o investimento em redes de transporte de gás que atravessem os Pirineús, oriundas dos gasodutos peninsulares, e também numa maior aposta no portos preparados para receber este gás, como é o caso de Sines, como entrada preferencial deste combustível na Europa.

Este equilíbrio, segundo o engenheiro do ambiente e mestre em gestão e políticas ambientais, Pedro Fonseca Santos, tem reforçado nos últimos anos “a segurança no fornecimento energético do país”. “ Nessa matéria Portugal teve um percurso recente bastante importante com o arranque há alguns anos do fornecimento de gás natural por via marítima, em complemento ao fornecimento por gasoduto, o que permite diversificar a sua proveniência e mitigar os riscos para o país com eventuais situações extremas nalguns países do Norte de África” aponta.

Acordo conjunto com Gazprom fortaleceria posição da UE

Uma possível União Europeia da Energia levaria, segundo Pedro Fonseca Santos, a “uma progressiva harmonização de preços a nível europeu, para evitar grandes distorções” e “com mecanismo de regulação nos setores onde prevaleça o mercado livre”.

“A União Europeia deve procurar ter uma política energética comum, concretizada por acordos globais com parceiros e países estratégicos. Só assim se conseguirá capacidade negocial que permita reforçar a segurança no abastecimento energético dos países europeus”, sublinha Pedro Fonseca Santos

Ao Observador, o engenheiro que também é consultor sénior em energia e ambiente, aponta que uma possível união deste tipo reforçaria “a segurança energética no abastecimento, em fontes de energia como o petróleo ou o gás natural que têm e ainda continuarão a ter um peso muito expressivo no mix energético europeu”. Actualmente cada país tem o seu mix de energia, ou seja, cada país escolhe livremente qual é o tipo de energia que compra, produz e consome, celebrando acordos com quem considera que são os seus fornecedores mais apropriados – e é aqui que Rússia assume a sua importância.

Devido à proximidade geográfica e à riqueza em gás natural da Rússia, 13 países da União Europeia dependem em mais de 50% da Gazprom, com apenas sete a não fazerem negócio com a gigante russa – Croácia, Dinamarca, Irlanda, Portugal, Espanha, Suécia e Reino Unido. E os países da UE, apesar de serem os que têm mais peso, não são os único clientes da Rússia.

“A médio prazo vamos assistir a uma verdadeira corrida e guerra pelos recursos energéticos. Países como a China ou a Índia estão a consumir cada vez mais energia, pelo que, para além do esforço de diversificação do mix energético e de eficiência energética, há que ter a capacidade de garantir para o conjunto da União Europeia os recursos energéticos, a preços competitivos, que permitam manter e reforçar o crescimento da sua economia” explica Pedro Fonseca Santos, justificando que o petróleo, o carvão e o gás natural vão continuar “a ter um peso muito significativo no mix energético europeu”. No entanto, uma possível mudança de perfil energético dos países europeus poderia diminuir esta dependência.

Segundo a Agência Internacional de Energia, a Europa usa um terço do seu consumo de gás natural para produzir electricidade, uma dependência que pode ser reduzida com recurso às trocas internas de electricidade gerada por energias renováveis. Uma alternativa que, para Pedro Fonseca Santos, deve passar pelo investimento no “reforço das interligações entre as redes energéticas dos vários países europeus de forma a que, por exemplo, energia elétrica produzida por centrais eólicas ou hídricas em Portugal possa ser vendida noutros países europeus que não apenas a Espanha”. Uma oportunidade para Portugal, que se destaca a nível europeu pela presença de renováveis no seu perfil energético.