Daqui a dois anos, poderá já ser possível usar uma técnica científica que permite criar um embrião a partir do material genético de três pessoas. Trata-se de uma pesquisa destinada a prevenir doenças genéticas incuráveis, mas está a levantar um debate ético e social sobre a possibilidade de haver bebés feitos ‘à medida’.
A técnica, conhecida como substituição mitocondrial, destina-se a evitar problemas de saúde graves associados a defeitos nas mitocôndrias – partículas celulares localizadas no citoplasma (fora do núcleo) que originam a energia necessária ao funcionamento das células. Os problemas de saúde podem passar por doenças cardíacas, do fígado e do rim, diabetes, cegueira, surdez, doenças oculares e gastrointestinais e demência.
As mitocôndrias apenas se transmitem hereditariamente entre mãe e filho. Assim, para se proceder à substituição mitocondrial, os cientistas recorrem a um ovócito de uma fêmea com mitocôndrias normais e removem o seu núcleo, substituindo-o pelo núcleo de um ovócito com problemas. A fêmea com defeitos nas mitocôndrias pode depois levar a gravidez até ao fim.
Desta forma, no processo de fertilização tomam parte três indivíduos: o pai, a mãe (que contribui com 25 mil genes) e uma dadora de ovócito saudável (que contribui com 37 genes). Até agora, a substituição mitocondrial não foi testada em humanos, tendo apenas sido levada a cabo com êxito em macacos-rhesus. De acordo com a Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA – Autoridade de Fertilização e Embriologia britânica), os progressos na investigação desta técnica permitem concluir que, dentro de dois anos, ela esteja pronta para ser utilizada em ensaios clínicos com humanos.
Em junho de 2013, o Governo do Reino Unido tornou-se no primeiro do mundo a admitir criar legislação que regulasse esta técnica de reprodução com três ‘progenitores’, mas desde aí tal regulamentação não chegou a ser criada e o debate foi subindo de tom. Logo em setembro do ano passado, três investigadores publicaram um artigo na Science onde alertavam para o risco da substituição mitocondrial afetar “um leque de traços importantes tais como o desenvolvimento individual, o comportamento cognitivo e parâmetros-chave da saúde” dos bebés. Também um painel científico americano chegou à conclusão, já em fevereiro deste ano, que os trabalhos até agora feitos eram inconclusivos. A HFEA, por seu turno, no relatório já citado, classifica a técnica como “não insegura”.
Bebés à medida?
A substituição mitocondrial “é uma forma esplêndida de diminuir a ameaça de uma doença que limita o tempo de vida”, afirma Alastair Kent, presidente da Genetic Alliance UK, uma associação de apoio a pessoas com doenças genéticas no Reino Unido.
O facto de os bebés terem três ‘pais’ parece, contudo, estar a sobrepor-se ao debate científico e às aparentes vantagens da técnica. O Human Genetics Alert, uma ONG também britânica, chamou a atenção para “o risco de um mercado de consumo eugénico de ‘bebés feitos à medida melhorados’ [enhanced designer babies, no original]”. “Existe o dogma de que nada deve impedir o avanço de nova medicina de alta tecnologia, por muito reduzidos que sejam os benefícios”, afirma David King, diretor desta organização, referindo-se ao facto de este tipo de problemas nas mitocôndrias ser extremamente raro e, por isso, o número de mulheres potencialmente envolvidas ser muito pequeno.
Por outro lado, levantou-se a questão da real maternidade da criança, uma vez que duas mulheres estariam envolvidas no processo. “Eu diria que o ‘terceiro progenitor’ não tem muita contribuição. A mulher que fornece as mitocôndrias [saudáveis] não é progenitora, porque o ADN mitocondrial não faz parte do ADN que define quem somos”, explica Shoukhrat Mitalipov, investigador da Universidade de Oregon responsável pela aplicação da substituição mitocondrial em macacos-rhesus.
Este especialista foi também o primeiro a conseguir criar embriões humanos normais através desta técnica, em 2012, pelo que acredita que está pronta a ser posta em prática. Os macacos que nasceram “são saudáveis e agora [está] a criá-los para ver o que acontece na próxima geração”, diz. Mas David King contrapõe: “A primeira criança que nascer vai ser uma experiência. Uma vez atravessado esse limite ético, é muito difícil voltar a impedi-lo”, remata.