Pode-se dizer que (quase) tudo aconteceu durante a tensa reunião do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo (GES) a 7 de novembro de 2013. Às revelações de que o clã Espírito Santo recebeu cinco milhões de comissões dos submarinos e de que houve uma sexta pessoa a receber uma fatia dos 30 milhões pagos à Escom, junta-se agora a recusa de Ricardo Salgado em explicar à família os 14 milhões de euros que recebeu do construtor José Guilherme.

De acordo com a investigação do jornal i, Ricardo Abecassis Espírito Santo, o membro luso-brasileiro da família, terá confrontado Salgado sobre o porquê de ter recebido 14 milhões do construtor civil da Amadora. Ricardo Salgado, para quem o Conselho Superior era o órgão onde “o grupo discute até à exaustão e só quando todos estão de acordo a decisão é tomada”, terá praticamente proibido os membros presentes de colocarem questões sobre o assunto e encerrou a conversa de forma perentória: “Esta relação com o José Guilherme é um assunto do foro pessoal“. “Não aceito mais conversas sobre esta matéria“, rematou. Mas para Ricardo Abecassis a explicação do primo não foi suficiente. Então o luso-brasileiro partiu para o ataque.

“E desculpe-me mas até agora não aceito a justificação que foi dada, acho que não é normal, não posso aceitar que um presidente de um banco receba um presente de um cliente desta magnitude. Isto leva a que os funcionários do banco possam receber presentes dos clientes e justificar que são seus amigos.”

“A mim choca-me. Se amanhã um diretor meu receber uma comissão ou um presente de um cliente, o que lhe vou dizer? Que não o pode fazer? Não acho que seja razoável. Desculpe-me, Ricardo, gosto muito de você mas acho que isso foi além do que a gente poderia imaginar.”

Ricardo Salgado não terá gostado de ouvir a palavra “comissão”. “A opinião pública fala de uma comissão, eu não recebi comissão nenhuma”, disse, num tom mais elevado, segundo a reconstituição que o i fez da reunião. A palavra “presente” também não agradou ao então presidente da Comissão Executiva do Banco Espírito Santo (BES). “Isto não foi nenhum presente, isto é um assunto que tem a ver com a minha relação pessoal com o José Guilherme. Nunca tive uma sociedade fora do grupo, nunca. (…) Nunca participei em capital de nada, não sou adviser nem conselheiro de ninguém”.

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Por que razão teria, então, José Guilherme, construtor civil que era também cliente do BES, oferecido um montante tão elevado a Salgado? A dúvida manteve-se, já que Ricardo Salgado não esclareceu. Mas para provar que a sua honestidade não estava em causa, Salgado recordou o atestado de inocência que o Ministério Público lhe passou em 2013 e acrescentou que já tinha ido “duas vezes ao Banco de Portugal” e o regulador teria concordado que era “um assunto do foro pessoal”. “Não faço as coisas no ar e muni-me dos pareceres necessários para que o assunto ficasse esclarecido”.

Segundo o i, Ricardo Salgado terá contado à família uma versão da história que contradiz uma série de dados que foram tornados públicos e, inclusive, algumas das suas declarações. A 17 de janeiro de 2013, o i escreveu que Ricardo Salgado não tinha declarado 8.5 milhões de euros ao fisco, razão pela qual fez três retificações fiscais da sua declaração de IRS de 2011. A segunda destas três retificações realizadas fora do prazo tinha por base a declaração de um rendimento total de 8.5 milhões de euros obtidos em Angola.

Em dezembro de 2012, a alegada fuga ao fisco levou Salgado a ser ouvido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e a 18 de janeiro de 2013 o DCIAP apresentava o seu atestado de inocência. “Em face das declarações fiscais conhecidas nos autos, não existem, com referência aos indícios até agora recolhidos, fundamentos para imputar ao requerente a prática de qualquer ilícito de natureza fiscal”, podia ler-se no despacho.

Salgado sempre desmentiu que os 8.5 milhões de euros fossem originários de Angola. Mas em setembro de 2013 o Semanário Sol escrevia que o empreiteiro José Guilherme teria pago em 2011 8.5 milhões de euros a Ricardo Salgado por serviços de consultoria aos seus negócios de construção civil em Angola. Uma quantia que terá sido transferida de uma conta offshore do construtor para outra de Ricardo Salgado com sede no Panamá. A transferência foi detetada através da documentação apreendida à Akoya Asset Mangement, durante a investigação do caso Monte Branco.

A justificação que Ricardo Salgado apresentou junto do Banco de Portugal e do DCIAP pode resumir-se a uma palavra: “liberalidade“. A revelação foi feita em julho pelo Jornal de Negócios. Liberalidade representa juridicamente “um ato de caráter espontâneo e a título gratuito que venha a favorecer ou a beneficiar economicamente alguém“. Salgado terá recebido os 14 milhões porque, segundo o próprio, quando José Guilherme pensou expandir os seus negócios para o leste europeu, terá feito uma proposta melhor: o construtor deveria antes ir para Angola.