Efeito borboleta. A 15 de novembro de 1959, Truman Capote tropeçou num artigo de 300 palavras do New York Times sobre o assassinato de uma família de quatro pessoas, passado na noite anterior a 2.000 quilómetros de distância da sua Nova Iorque. O crime jamais visto na pequena Holcomb, terra habitada por duas centenas de pessoas e onde ninguém trancava a porta de casa, chocou o país, mas também mudou para sempre a vida do escritor-repórter norte-americano. No dia em que passam 55 anos sobre o crime, recorda-se um dos grandes nomes da literatura do século XX, falecido em 1984 longe do glamour e da glória.

Era na revista The New Yorker que Truman Capote dava largas à veia de repórter. A revista consentia o experimentalismo e dava-lhe todas as condições para que entregasse bons trabalhos. Não é por isso de estranhar a resposta positiva quando Capote propôs seguir de perto um crime, por mais estranho que pudesse parecer. Apanhou o avião com direção ao Kansas, acompanhado pela amiga e também escritora Harper Lee (autora de To Kill a Mockinbird), o primeiro de muitos aviões que Capote haveria de apanhar nos seis anos seguintes para aquele lugarejo tão diferente da cidade que nunca dorme. O fim das viagens só chegaria com a morte por enforcamento de Perry Smith e Richard Hickock, os dois assassinos, e a consequente publicação do livro A Sangue Frio em 1966, depois de vários textos publicados na The New Yorker. Mas já lá vamos.

Capote não foi até Holcomb para descrever o crime numa notícia. O objetivo era contar uma história única e, para isso, era preciso abrir muitas portas. Depois de fazer amizade com o detetive Alvin Dewey Jr., que estava à frente do caso, foi mais fácil: fotografias da família morta, relatórios das autoridades, o diário de Nancy e muitas horas de conversas com os suspeitos, a tudo lhe foi permitido o acesso. Sem essa proximidade, dificilmente A Sangue Frio teria visto a luz do dia porque Truman Capote não era um repórter qualquer, nem aquela era uma reportagem qualquer.

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A propriedade da família Clutter, onde aconteceu o crime. ©D.R.

Muito antes de A Sangue Frio transformar Truman Capote no nome central do Jornalismo Literário houve um sinal de que a sua escrita haveria de seguir este caminho, com a revista The New Yorker a funcionar como a plataforma perfeita – “a única revista que conheço que encoraja os sérios praticantes desta forma de arte”, diria o escritor em 1966, ao New York Times. Recuemos a 1956. A pedido da revista, o escritor acompanhou a digressão da ópera americana “Porgy and Bess” à Rússia. A Guerra Fria dava à viagem um especial interesse e Capote, em vez de publicar na revista uma reportagem tradicional, juntou-lhe as técnicas ficcionais da escrita. Depois de publicada na The New Yorker em duas partes, a reportagem transformou-se em The muses are heard, o primeiro livro de não ficção de Truman Capote e uma espécie de experimentação do que seria, dez anos mais tarde, a grande obra não ficcional da sua carreira.

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“Na verdade, não considero o estilo desse livro especialmente diferente do meu estilo ficcional”, disse em 1957, numa entrevista à “Paris Review” aqui traduzida por Carlos Vaz Marques para a Tinta-da-China. “Mas acredito que o meu método ficcional tem um à-vontade semelhante – a emoção faz-me perder o controlo da escrita: tenho de esgotar a emoção até me sentir suficientemente cínico para a analisar e planear, e no que me diz respeito esta é uma das leis para se obter uma boa técnica. Se a minha ficção parece mais pessoal é porque depende do aspeto mais pessoal e mais revelador de um artista: a imaginação”.

A imaginação no centro da não ficção de Capote

A Sangue Frio deu ao autor lugar cativo no “olimpo” do chamado Novo Jornalismo, a par de nomes como Tom Wolfe, Hunter S. Thompson e Gay Talese. O género popularizou-se nos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos por questionar a ditadura da objetividade e adicionar à escrita jornalística técnicas usadas na literatura. Mas isso era pouco. Truman Capote, que anos antes de publicar A Sangue Frio já se referia a ele como “o livro não ficcional da década”, assumia-se como o inventor de um novo estilo: “romance não ficcional”. Numa entrevista ao New York Times, em 1966, explicou assim as técnicas que usou na cobertura do crime e que definem o romance não ficcional:

“É claro que uma peça bem feita de reportagem narrativa requer imaginação! E uma boa dose de bagagem técnica própria que vai normalmente além dos recursos da maioria dos escritores ficcionais: a capacidade de transcrever para texto longas conversas, e isso sem tirar notas nem usar gravadores. Além disso, é necessário ter uma visão 20/20 para detalhes visuais – neste sentido, é verdade que uma pessoa tem de ser um “fotógrafo literário”, ainda que extremamente seletivo. Mas, acima de tudo, o repórter tem de ser capaz de criar empatia com personalidades fora do seu alcance, mentalidades contrárias à sua, tipos de pessoas sobre as quais nunca teria escrito sem ser pela obrigação jornalística. Esta última foi o que me atraiu primeiro para a noção de reportagem narrativa”.

American author Truman Capote (1924 - 1984).    (Photo by Evening Standard/Getty Images)

Truman Capote. ©Getty Images

Mark Kramer, diretor da conferência anual The Power of Narrative, e que entre 2001 e 2007 fundou e dirigiu o programa de Jornalismo Narrativo no Programa Nieman da Universidade de Harvard, disse ao Observador que foram vários os nomes que ajudaram a fundar o jornalismo literário. “John Hersey escreveu, num ano, o incrível Hiroshima, um relato minuto a minuto do lançamento da bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial. Foi publicado pela The New Yorker em 1946, com uma voz tão elegante e abrangente quanto a de Capote, ou Tom Wolfe”.

Para Truman Capote, no entanto, Hiroshima era um trabalho diferente do seu, como disse na entrevista ao New York Times. Tinha a vantagem de ser criativo, por não ter sido escrito a partir de gravações de conversas, mas era “estritamente uma peça jornalística clássica”. James Breslin e Tom Wolfe também não tinham nada a ver consigo porque não recorriam à tal “bagagem técnica” já referida. Para Capote, era possível fazer com que uma reportagem fosse tão interessante quanto a ficção. “Sinto que a reportagem criativa tem sido negligenciada e que tem grande relevância para a escrita do século XX”. Mas não era para todos. “É inútil para um escritor cujo talento é essencialmente jornalístico tentar a reportagem criativa, porque não vai resultar. (…) É preciso ser-se um ótimo escritor de ficção”, defendia.

Na opinião do exigente – imodesto? – escritor, o mais próximo do estilo “romance não ficcional” era Picture, de Lillian Ross, datado de 1950. “Ou o meu próprio livro The muses are heard“, disse. O conceito de Jornalismo Literário, onde se insere o mais recente Novo Jornalismo, pode remontar ao século XVIII, com Daniel Defoe, e ao século XIX, com Mark Twain. Mas no que toca ao nascimento do romance não ficcional apregoado por Capote, Norman Sims, presidente da International Association for Literary Journalism Studies, disse ao Observador que concorda que o trabalho de Lillian Ross para a New Yorker, sobre um novo filme de Hollywood, possa ter marcado o início do novo estilo.

“Sabe, se a história for o que eu penso que é, é quase um livro, um tipo de romance por causa da forma como as personagens se podem vir a desenvolver e da variedade de relações existentes entre elas. Não sei se este tipo de coisa alguma vez foi feita, mas não vejo porque não hei de tentar fazer uma peça factual em forma de romance, ou talvez um romance em formato factual”, podia ler-se numa carta que Lillian Ross escreveu a William Shawn, na altura editor da New Yorker.

“Imaculadamente factual” ou factualmente duvidoso?

Truman Capote descreveu A Sangue Frio como “imaculadamente factual”. Mas ter-se-á, afinal, deixado levar pela veia literária? A pergunta foi feita logo em 1966 na Esquire, num artigo de Philip K. Tompkins intitulado “In Cold Fact”. Ganhou força em 2013, quando o Wall Street Journal publicou novas provas de que a aclamada obra de Jornalismo Literário não seria tão imaculadamente factual assim. Pode ter havido uma troca de favores. Para conseguir a amizade do detetive Alvin Dewey Jr., o escritor pode ter-lhe concedido um retrato mais favorável do que o que aconteceu na realidade.

Por exemplo, no livro de Capote pode ler-se que, após terem sido conhecidos os nomes dos dois suspeitos, o detetive enviou, na mesma noite, um agente para a casa onde um dos suspeitos estaria a viver com os pais. De acordo com documentos do Kansas Bureau of Investigation recentemente encontrados, só passados cinco dias é que foi tomada uma atitude. Mesmo em Capote: a Biography, publicado em 1988, o autor Gerald Clarke admite que a cena final de A Sangue Frio, cheia de diálogos num cemitério, foi inventada, só para o livro não terminar com as execuções de Perry e Hickock.

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Philip Seymour Hoffman interpretou Truman Capote em 2005. ©D.R.

Que não haja dúvidas. No Jornalismo Literário, a imaginação defendida por Capote nunca pode evoluir para a invenção. “O ‘contrato’ de fiabilidade estabelecido entre autor e leitor é um princípio que não pode ser quebrado. Cada um de nós vê a realidade de forma diferente, o autor tal como o leitor: o autor escreve acerca do que viu, ouviu, investigou. Escreve-o à sua maneira, com as suas técnicas e palavras, mas não pode inventar, não pode compor personagens”, explicou ao Observador Alice Donat Trindade, professora na Universidade de Lisboa e presidente da International Association for Literary Journalism Studies entre 2010 e 2012.

O atual presidente da associação, Norman Sims, considera que o termo “romance não ficcional” é uma contradição. “Um romance é inventado, a não ficção não é. No caso de Capote, os dois misturaram-se em algumas passagens”. Por isso, a etiqueta não poderia ser mais adequada. “O livro sobreviveu ao teste do tempo. Continua a ser uma boa leitura. Mas agora que sabemos mais, romance não ficcional parece ser um termo bastante preciso para o livro”.

“O Jornalismo Literário não era ainda um género que muita gente, mesmo a primeira dúzia de autores, percebia muito bem. Demasiado espaço para o ego e para a vaidade nas reivindicações de quem o teria inventado”, disse ao Observador Mark Kramer. Mas o essencial estava lá. Hoje em dia, com a internet, nem vale a pena tentar. As mentiras têm ainda mais perna curta e o leitor está mais protegido da imaginação do repórter.

Apesar de algumas falhas, A Sangue Frio continua a ser uma das obras fundadoras do Novo Jornalismo. Mostrou aos autores de ficção que “a narrativa não ficcional podia render muito dinheiro”, disse Norman Sims. De “leitura emocionante”, Capote conseguiu tornar o crime verdadeiro num género literário de sucesso comercial. E agarrar o leitor a uma história cujo desfecho já todos conheciam.