O primeiríssimo deputado que se levantou para falar na primeiríssima sessão da Assembleia Constituinte, na tarde de 3 de Junho de 1975, não tinha gravata e não tinha tempo a perder. Américo Duarte, o único eleito pela UDP, estava com pressa para cortar cabeças. Sem medo de agredir a perfeição estilística através de uma incessante repetição vocabular, denunciou alguém que acumulava o facto de ser “um destacado fascista” com o de ser “um destacado elemento de vanguarda do fascismo” e ainda, para piorar as coisas, “um destacado e importante elemento fascista”.
O “destacado” em causa era agora também colega de Américo Duarte: João Bosco Mota Amaral, que fora deputado da Ala Liberal durante o Estado Novo, acabara de ser eleito para a Constituinte nas listas do PPD. Se dependesse do deputado da UDP, não ficaria lá por muito tempo – ele queria que Mota Amaral fosse impedido de participar na nova Assembleia.
O facto de esta sua primeira proposta ter sido chumbada não desanimou Américo Duarte. Operário da Lisnave, trabalhava desde os 11 anos – e sabia que o seu mandato em São Bento seria uma acumulação de desilusões e derrotas. A Voz do Povo, jornal oficial da UDP, referia-se a ele como “um elemento revolucionário lançado no seio do inimigo” e como alguém que durante alguns meses seria forçado a lidar com a “canalha burguesa”. O próprio Américo Duarte descrevia o parlamento, onde não tinha correligionários nem apoiantes, como um “saco de caranguejos” e um “ninho de lacraus”.
Na realidade, nem ele nem o partido queriam propriamente estar ali, como se a sua simples presença naquele lugar fosse uma traição à revolução. A UDP estava permanentemente preocupada em não cair “no engodo das soluções eleitoralistas” e o deputado, que chegou a pedir várias vezes a dissolução da Constituinte, afirmava querer “desmascarar a própria Assembleia”.
Uma forma de fazer isso era recorrer à violência retórica. Alguma dela ofendia os ouvidos pudicos dos funcionários do parlamento responsáveis pela transcrição dos debates. Pelo menos uma vez, recusaram repetir o que era dito e recorreram a uma fórmula genérica: “O senhor deputado Américo Duarte proferiu diversas frases de protesto, algumas de conteúdo grosseiro.”
A 7 de Agosto, o operário da Lisnave resolveu atirar o seu martelo metafórico na direcção da bancada do CDS, onde se encontrava um desprevenido Diogo Freitas do Amaral, que percorreu em poucos segundos o caminho que leva da perplexidade à apoplexia. Como se pode ver pela transcrição do debate, que também envolveu o Presidente da Assembleia, não foi um espectáculo bonito:
Américo Duarte: O povo tem de saber que ficar escrito na Constituição o pluralismo da expressão e da organização política é o mesmo que ficar escrito que os fascistas têm direito à expressão. Por exemplo, é à sombra desse pluralismo que hoje os fascistas do CDS estão nesta Assembleia. Eu queria perguntar ao fascista do Freitas do Amaral se o Campo Pequeno…
(Risos.)
Freitas do Amaral: Retire essa palavra.
Presidente: Não são maneiras de se dirigir ao Sr. Deputado.
Américo Duarte: É à sombra desse pluralismo que os fascistas do CDS…
Presidente: O Sr. Américo Duarte não pode continuar no uso da palavra se não se dirigir convenientemente ao Sr. Deputado Freitas do Amaral.
Freitas do Amaral: Sr. Presidente…
Américo Duarte: Por exemplo, é à sombra desse pluralismo que os fascistas do CDS…
Presidente: O Sr. Deputado Américo Duarte não pode continuar no uso da palavra se não se dirigir convenientemente aos seus colegas.
Américo Duarte: Aos Srs. Deputados que votaram a favor desse pluralismo…
Vozes: Não apoiado!
Américo Duarte: …pergunto se à sombra dele o fascista Caetano…
Presidente: O Sr. Deputado não tem a palavra. A palavra é-lhe tirada. Está ofendendo colegas. Tenha a bondade.
Américo Duarte: Face a isso eu abandono a Assembleia.
(O Sr. Deputado Américo Duarte abandonou a sala tendo ao passar junto ao sector do CDS proferido as seguintes palavras: ‘Fascistas! Vocês caberão todos no Campo Pequeno’).
“Rua! Urso!”
Com o tempo, os adversários de Américo Duarte desenvolveram três estratégias para lidarem com ele. A primeira era a provocação. O deputado da UDP acusou o PS de ter colocado dois socialistas atrás de si para o tentarem tirar do sério. Numa entrevista ao Público, lembrou: “Estavam sempre a chamar-me nomes, a picarem-me, a tratarem-me mal. Chamavam-me de tudo. Falava-se em ladrões e eles diziam ‘Está aqui mais um à nossa frente’.” As tentativas de desestabilização resultaram. Um dia, o operário fartou-se e pegou numa cadeira para, usando as suas imortais palavras, “atirar com ela aos cornos de um dos gajos”.
A segunda estratégia era o ataque. Quando ele falava, os deputados dos outros partidos insultavam-no. Basta um exemplo, especialmente poético: “Rua! Urso!”
A terceira estratégia era, de longe, a mais inteligente: o elogio. “O que me deixaria aborrecido era se a burguesia começasse a bater palmas”, diria mais tarde Américo Duarte ao Público. Foi isso mesmo que aconteceu na sessão de 2 de Outubro de 1975, quando o deputado da UDP se lançou sem travões numa tirada contra a medicina privada e contra os médicos que gostavam de “encher os bolsos”. De cada vez que dizia uma frase inflamada, ouviam-se risos e vozes a berrar “Muito bem!”. Irritado, Américo respondeu: “Eu dispenso que a burguesia me diga ‘Muito bem’”. Mas a “burguesia” insistiu e, até ao final do discurso, os “Muito bem!” continuaram. Noutro debate, um adversário foi mais longe e gritou: “Américo ao Governo!”
Na verdade, o deputado da UDP não estava preparado para nada daquilo. Em bom rigor, nem deveria ali estar. Só entrou em São Bento porque o cabeça de lista por Lisboa, João Pulido Valente, renunciou ao mandato ainda antes de tomar posse. Américo Duarte revelou ao Público: “Eu nem sabia que era o segundo da lista. Eu não sabia o que era uma Assembleia Constituinte. Acredita nisto?”
Os seus assessores, pelo menos, acreditavam. Nos momentos das votações, sentavam-se nas galerias do hemiciclo com uma caneta na mão que servia de código: se a colocassem com a tampa para cima, o deputado deveria votar a favor; se estivesse para baixo, deveria votar contra; se fosse posta na horizontal, deveria abster-se.
Américo Duarte via em todo o lado “traidores” da classe operária: no PS, no PPD, no CDS, no PCP, no MDP. Era só uma questão de tempo até começar a ver “traidores” no seu próprio partido. Esse dia chegou a 25 de Novembro, quando, na sua opinião, “a maior parte dos dirigentes políticos da UDP e do PCP (R) fugiram”. Sem surpresa, pouco depois o partido substituiu-o na Assembleia Constituinte, colocando no seu lugar o músico e actor Afonso Dias. Américo Duarte saiu de São Bento e regressou à Lisnave. Para ele, a revolução tinha acabado.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Voz do Povo” de 6 de Maio e 10 de Junho de 1975
“Flama” de 22 de Agosto de 1975
“Público” de 2 Abril de 2005
“Grande Reportagem” de 2 de Abril de 2005