“A pior coisa que há na vida é desmentir a realidade”. Foi desta maneira que o presidente da comissão parlamentar dos Assuntos Constitucionais se dirigiu à deputada social-democrata Teresa Leal Coelho durante a reunião desta quarta-feira no Parlamento dedicada ao tema do enriquecimento injustificado. Fernando Negrão perdeu a calma e repreendeu de forma dura a deputada da bancada do PSD por esta ter contrariado uma decisão anterior da comissão para coordenar um grupo de trabalho informal sobre as propostas de combate ao enriquecimento não declarado. Ao fim de 15 dias, o grupo de trabalho não se reuniu nenhuma vez.

Perante a discussão acesa sobre metodologia de trabalho e formalidades, a votação dos diplomas na especialidade voltou a ser adiada por mais uma semana, sendo que a comissão decidiu que o grupo de trabalho informal teria efetivamente de se reunir até lá para concertar posições. A primeira reunião é já esta quarta-feira.

Em causa estava a decisão, tomada na reunião de há duas semanas, de criar um grupo de trabalho informal, com representantes dos vários partidos, para discutir o conteúdo dos projetos de lei sobre o combate ao enriquecimento não declarado com o objetivo de chegar ao “mais amplo entendimento possível” sobre o tema. O objetivo era os partidos chegarem à reunião desta quarta-feira com a discussão feita e prontos a votar os diplomas. Mas não foi isso que aconteceu.

Questionada pelo presidente da comissão parlamentar sobre as conclusões do grupo de trabalho, a deputada social-democrata Teresa Leal Coelho, que tinha sido designada coordenadora dos trabalhos informais, afirmou que não tinha havido quaisquer reuniões no decorrer das duas últimas semanas por, no seu entender, não ter sido criado efetivamente nenhum grupo de trabalho para o efeito. “Não foi esse o nosso entendimento”, começou por dizer a deputada, explicando que na reunião anterior, perante a proposta do PS de ser constituído um grupo de trabalho informal, o PSD sempre se opôs, preferindo o termo “reuniões informais” ao conceito de grupo de trabalho tal como o regulamento da Assembleia o prevê.

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“Se houve alguma divergência de entendimento, lamento, mas os grupos de trabalho têm de ser aprovados pela maioria dos deputados desta comissão e não foi esse o caso”, acrescentou, garantindo que iria pedir aos serviços da comissão as atas e as gravações da reunião anterior onde o assunto foi discutido, “apenas para razão de alegações de falta de seriedade”.

Mas o argumento não colheu junto dos restantes deputados e, sobretudo, junto do próprio presidente da comissão parlamentar, que levantou a voz para responder a Teresa Leal Coelho, acusando-a de “não ter razão” e de falta de “seriedade”. “A pior coisa que há na vida é desmentir a realidade, a senhora deputada não tem razão nenhuma”, disse Fernando Negrão visivelmente irritado por a deputada não ter dado seguimento à diligência. “Todos os deputados que estiveram nesta comissão ouviram claramente a senhora deputada dizer que se honrava por ter sido designada coordenadora do grupo de trabalho informal – se isso não é uma declaração de aceitação do grupo de trabalho então é o quê?”, questionou o presidente da comissão, também social-democrata.

Também o deputado socialista Jorge Lacão se juntou a Negrão para corroborar a tese. “Passado uma semana ainda não tinha havido nenhuma reunião, por isso perguntei aqui publicamente ao presidente se tinha havido alguma objeção à formação do grupo de trabalho, ao que o senhor presidente disse que não e mostrou perplexidade, voltando a apelar à deputada no sentido de as diligências serem seguidas”, disse, confirmando que depois desse segundo apelo continuou a não haver convocação por parte da coordenadora dos trabalhos para nenhuma reunião. Também Fernando Negrão acrescentou que nessa altura enviou um e-mail à deputada, mas não obteve resposta até hoje.

Perante o impasse instalado, com todos os deputados dos restantes grupos parlamentares a concordarem que o grupo de trabalho teria de funcionar antes de se votarem os diplomas, Teresa Leal Coelho acabaria por dar um passo atrás propondo um adiamento da votação dos diplomas para a próxima semana de modo a que se fizesse, até lá, “uma, duas ou três reuniões com os vários representantes dos grupos parlamentares, para que não fique aqui o estigma de ausência de democracia”.

Perante a insistência do deputado socialista Jorge Lacão, ficou ainda decidido que as reuniões informais do grupo de trabalho seriam abertas à comunicação social, não obstante o argumento dos restantes de isso seria um entrave às pontes e entendimentos . O primeiro encontro é já esta quarta-feira, às 14 horas, apesar da pouca “fé” dos deputados de que se chegue a um projeto mais consensual. “Parece difícil haver entendimento num projeto comum porque as soluções dos vários partidos para o problema são diferentes, e porque o PS nunca quis criminalizar o enriquecimento injustificado”, sintetizou o deputado centrista Telmo Correia.

Propostas reformuladas

Entretanto, os partidos apresentaram algumas alterações às suas propostas legislativas. Na segunda-feira, a maioria PSD/CDS apresentou um texto de substituição ao seu diploma, deixando cair a expressão ilícito (que substitui por injustificado), para evitar pressupostos de obtenção ilícita de rendimentos que violariam de novo o princípio da presunção da inocência, causa do chumbo inicial do Tribunal Constitucional em 2012.

Além disto, o novo projeto de lei da maioria, que procura ter em conta as recomendações das entidades judiciais ouvidas em sede de especialidade, prevê ainda uma pena de prisão até três anos no caso de acréscimo patrimonial acima de 350 salários mínimos (cerca de 176 mil euros) dos cidadãos, agravada para cinco anos se essa discrepância for de 500 salários mínimos (252 mil euros). A pena é ainda agravada para oito anos se se tratar de titulares de cargos públicos e políticos.

Também o PS mexeu no sei diploma, aproximando-se da via escolhida pelo PCP da criar uma nova obrigação de apresentação da declaração de rendimentos ao Tribunal Constitucional, em início de funções e nos três anos após a cessação das funções, punindo os que não o façam e os que, fazendo, tenham rendimentos efetivos diferentes dos que são declarados. O projeto dos socialistas continua a dizer apenas respeito aos titulares de cargos políticos e não aos cidadãos em geral, passando agora a prever uma pena de prisão para os “titulares de cargos políticos e equiparados” que tenham rendimentos “desconformes” face ao declarado.

“Quem fizer ou atualizar declaração da qual intencionalmente não conste a indicação (…) dos elementos patrimoniais dos rendimentos e dos cargos sociais legalmente exigidos e vier a revelar acréscimos patrimoniais desconformes com os rendimentos e bens declarados ou que devesse ter declarado é punido com pena de prisão até 3 anos”, lê-se.

O combate ao enriquecimento ilícito é um bandeira antiga do PSD e, em particular, da ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, pelo que o objetivo da maioria é fazer aprovar o diploma rapidamente, para o processo legislativo ficar concluído a tempo desta legislatura. Na última vez que o Parlamento tentou legislar o enriquecimento ilícito, em 2012, o projeto de lei do PSD/CDS acabaria chumbado no Tribunal Constitucional por alegada violação do princípio da presunção da inocência e da ausência de bem jurídico definido.