É assim todos os anos, desde 1945, entre setembro e outubro — as Nações Unidas reúnem na sua sede em Nova Iorque, aonde rumam os líderes e outros representantes de todos os países do mundo para discutirem aquelas que são as questões essenciais. Este ano, os temas principais são as alterações climatéricas, a questão nuclear do Irão e também a guerra da Síria. Além de um dos pontos altos da diplomacia, a reunião anual da ONU é um momento por excelência para aqueles que melhor (ou, de certa forma, pior) dominam a arte de discursar. Recorde cinco momentos que ficaram para a História.
Fidel Castro (1960): o discurso “breve” que acabou por ser o mais longo de sempre
Em 2015 são poucos os que não sabem quem é Fidel Castro, mas o mesmo não se podia dizer em 1960. Nessa altura, o revolucionário cubano estava há apenas um ano no poder — no final de contas, quando cedeu o poder ao irmão Raúl em 2008, esteve um total de 49 anos à frente dos destinos da ilha caribenha. Houve, porém, algo que todas as pessoas que seguiram aquela assembleia geral da ONU ficaram a saber sobre Fidel Castro naquele momento: ele era capaz de discursar durante horas a fio.
Mas foi precisamente o contrário que prometeu no início da sua intervenção. “Ainda que nos tenham dado a fama de falarmos extensivamente, não se devem preocupar. Vamos fazer o possível para sermos breves e para expor aquilo que entendemos ser o nosso dever expor aqui. Vamos também falar devagar, para facilitar o trabalho aos intérpretes.”
Entre o “breve” e o “devagar”, Fidel Castro falou durante quatro horas e meia. Outros números interessantes: disse “Cuba” 189 vezes, falou nos Estados Unidos 149 vezes, fez outras 30 referências à União Soviética e ainda 23 ao “imperialismo”. Se tiver tempo e interesse, pode ler aqui o discurso completo, em castelhano.
No final das quatro horas e meia, terminou a maratona com a seguinte frase: “Alguns queriam conhecer qual era a linha do governo revolucionário de Cuba. Ora bem, esta é a nossa linha!”.
Até agora, não houve ninguém que ultrapassasse a marca de Fidel numa assembleia geral da ONU.
https://www.youtube.com/watch?v=cHbSJ7RwjF8
Kruschov (1960): Entre ameaças de enterro e sapatadas
Passavam exatamente 14 anos da primeira Assembleia Geral das Nações Unidas quando o Presidente da União Soviética, Nikita Kruschov, teve um conjunto de intervenções que iriam ficar para sempre nos registos daquelas reuniões em Nova Iorque. Em plena Guerra Fria, Kruschov pouco se fez valer da fama de reformista que lhe era — embora timidamente — reconhecida internacionalmente, sobretudo quando comparado com o legado questionável de Iosef Estaline.
O primeiro incidente deu-se enquanto o representante da delegação das Filipinas, Lorenzo Sumulong, fazia uma intervenção em que denunciava a União Soviética: “Os povos da Europa de Leste e doutros lugares têm sido privados do seu direito de exercício de liberdades e direitos políticos, que têm sido engolidos pela União Soviética”.
Kruschov não gostou do que ouviu e começou a bater na mesa, com o punho fechado e com força. O resto da delegação soviética juntou-se-lhe, embora não com a mesma veemência. Diz-se que Kruschov esmurrou a mesa com tanto vigor que o seu relógio acabou por estragar-se.
Segundo escreveu o New York Times na altura, Kruschov chegou a bater com o sapato na mesa. Até hoje não se conhecem nenhumas imagens desse momento além de uma fotografia em que surge um sapato na mesa — mas não há sinal de impacto. Assim, a veracidade daquele momento tem sido questionada. Até pelo mesmíssimo New York Times, que em 2003 publicou o texto Did he bang it?: Nikita Khrushchev and the shoe. É lá que surgem versões contraditórias da mesma história. Um outro jornalista do jornal nova-iorquino da altura, que não assinou a notícia de 1960 mas que estava presente na assembleia, garante que Kruschov apenas tirou o sapato mas que não chegou a bater na mesa com o mesmo. Uma versão da história que é confirmada por um fotojornalista da revista Life. Já um antigo agente do KGB recorda que Kruschov de forma rítmica, “como um metrónomo”.
Outro debate surge em torno do discurso que Kruschov fez momentos mais tarde. Pensa-se que terá sido um problema de tradução. Há quem diga que o líder soviético tenha ameaçado os restantes países representados na sala que não alinhavam ao lado de Moscovo com um curto “vamos enterrar-vos a todos”. Mas também há outra versão que defende que aquilo que Kruschov disse, na verdade, foi que a União Soviética iria sobreviver e durar mais tempo do que os países capitalistas. Assim, assistiria aos seus enterros — algo que a História acabou por não confirmar.
Yasser Arafat (1974): “um ramo de oliveira numa mão e uma arma noutra”
A presença de Yasser Arafat na assembleia geral da ONU de 1974 esteve longe de ser pacífica. Dois anos antes, nos Jogos Olímpicos de Munique, membros de uma facção da Frente pela Libertação da Palestina (FLP) raptaram e mataram 17 pessoas, incluindo atletas israelitas.
Arafat já era então a principal cara da FLP e foi a Nova Iorque por convite do Movimento dos Não Alinhados, o grupo que juntava países que procuravam fugir à dicotomia da Guerra Fria optando por uma terceira via. Muitos deles, porém, eram países comunistas, como Cuba e a Jugoslávia.
Como seria de esperar, Arafat concentrou o seu discurso em críticas a Israel e ao sionismo, que equiparou ao racismo e outros ismos: “A nossa intenção para construirmos um novo mundo está fortalecida. Um mundo livre de colonialismo, imperalismo, neocolonialismo e racismo em cada um das suas expressões, incluindo o sionismo”.
Por fim, terminou o seu discurso com três frases que ficaram para a História: “Hoje venho aqui com um ramo de oliveira numa mão e com uma arma noutra. Não deixem que o ramo de oliveira caia da minha mão. Repito: não deixem que o ramo de oliveira caia da minha mão”.
Arafat conseguiu tirar pelo menos uma vitória desta intervenção — um ano depois, a 10 de novembro de 1975, a ONU passou uma resolução que determinava que “o sionismo é uma forma de racismo e de descriminação racial”. A resolução teve o voto contra de 35 países, a abstenção de outros 32 e contou com a aprovação de 72. Entre estes últimos estavam a União Soviética e seus aliados, tal como países de maioria muçulmana. E apenas um na Europa ocidental votou a favor: um país chamado Portugal que, poucos dias depois, a 25 de novembro, teria o segundo golpe de estado em dois anos.
Hugo Chávez (2006): “Ontem o diabo esteve aqui!”
O confronto entre o ex-Presidente dos EUA, George W. Bush, e o falecido Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi uma das maiores tensões geopolíticas da primeira década do século XXI e um dos seus maiores registos foi o discurso que este último fez a 20 de setembro de 2006. O contexto não era qualquer um: vários países da América do Sul elegiam governos anti-americanos; os EUA tinham tropas no Afeganistão e no Iraque; entre julho e agosto desse ano o Hezbollah e Israel disputaram uma violenta guerra no Líbano. No meio disto tudo, Chávez era daqueles que mais se destacavam em todo o mundo no ataque à política externa de Bush.
Quando subiu à tribuna da Assembleia Geral da ONU, Chávez fez menção ao seu homólogo norte-americano, que no dia anterior discursara perante a mesma audiência e a partir do mesmo palanque. “Ontem o diabo esteve aqui. Ontem o diabo esteve aqui! Este lugar ainda cheira a enxofre”, disse, enquanto se benzia, arrancando alguns aplausos e outra tantas gargalhadas à sala. O nome de Bush nunca saiu da boca do líder venezuelano, mas foi evidente que era dele que se tratava: “Ontem senhoras e senhores, desde esta tribuna, o senhor Presidente dos Estados Unidos, a quem eu chamo ‘o Diabo’, veio aqui falar como dono do mundo. Não seria um exagero um psiquiatra analisar o discurso de ontem do presidente dos EUA”.
Benjamin Netanyahu (2012): o desenho de uma bomba que rebentou nas mãos de Bibi
O projeto nuclear do Irão é possivelmente o tema que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, mais refere em ocasiões internacionais. Mais recentemente, em março deste ano, foi ao Congresso norte-americano a convite dos congressistas republicanos para discursar naquela câmara contra o acordo nuclear entre os EUA e o Irão. O tom foi sério e deixou denunciar o evidente mal-estar de Bibi com Barack Obama.
Em 2012, o tom foi semelhante mas o método foi outro. Netanyahu quis provar que o Irão estava cada vez mais perto de construir uma bomba nuclear e achou que a melhor maneira de fazer passar a sua ideia aos restantes líderes mundiais era fazendo-lhes um desenho.
“Isto é uma bomba, isto é um rastilho”, disse, com a cartolina com o desenho de uma bomba, ao jeito de um cartoon.
A bomba estava divida em três fases: uma de 70%, outra de 90% e uma outra, a final. “Onde é que está o Irão? O Irão já completou a primeira fase. Levaram muitos anos a chegar lá, mas já estão a 70% do caminho. E agora já estão na segunda fase. E na próxima primavera, no máximo até ao verão, (…) estarão na fase final.”
Netanyahu conseguiu passar a sua mensagem de forma indiscutivelmente clara — algo que estaria dentro dos seus planos. Por outro lado, era difícil adivinhar a quantidade de imagens que iriam surgir na Internet a parodiar o seu discurso — sendo que os internautas que não perdem um segundo para fazer uma boa piada tiveram uma clara preferência por meter Bibi lado a lado com o Bugs Bunny.