“Por favor recorde aos irmãos da Somália para terem compaixão com as pessoas (…) Por favor fale com os irmãos somalis para reduzir os danos aos muçulmanos no Mercado de Bakarah como resultado do ataque à sede das forças africanas”.

Este excerto é de uma carta escrita por Osama Bin Laden e que faz parte de um conjunto de documentos traduzidos e publicados pelas autoridades americanas depois da morte do líder da Al Qaeda. E podia resumir as principais diferenças entre este grupo e o autodenominado Estado Islâmico que há muito ganhou o protagonismo no que ao terrorismo diz respeito. Os objetivos, pelo menos a curto prazo, bem como o método de operação e de governação são muito distintos entre os dois grupos extremistas. 

395617 01: (FILE PHOTO) Saudi dissident Osama bin Laden in an undated photo. October 10, 2001. Afghanistan's ruling Taliban lifted restrictions on Bin Laden, giving him permission to conduct "Jihad," or holy war, against Afghanistan's enemies. (Photo by Getty Images)

“Deve pedir-lhes para evitar insistir na formação de um Estado islâmico neste momento, mas para trabalhar em quebrar o poder do nosso principal inimigo atacando as embaixadas americanas em África (…) Devemos salientar a importância do timing do estabelecimento do Estado Islâmico.” GETTY IMAGES

Nos dias de hoje parece que a Al Qaeda foi derrotada. Mas, como se prova pela sua reivindicação dos ataques ao hotel Radisson no Mali desta sexta-feira, ela não desapareceu. Desde a morte do seu líder, Osama bin Laden em 2011, que a Al Qaeda tem perdido força e, principalmente, protagonismo internacional. Ao longo dos últimos anos foi sendo substituída gradualmente no palco principal do terrorismo pelo Estado Islâmico. E eles que até foram, em tempos, um e o mesmo grupo.

No rescaldo da invasão dos Estados Unidos ao Iraque, em 2003, o grupo terrorista, de origem sunita, esteve na linha da frente no combate ao exército americano e aos xiitas que subiram ao poder depois da queda e morte de Saddam Hussein. E foi aqui que começaram a surgir diferenças de atuação e de intenções dentro da organização. Um fração mais radical queria não só expulsar os americanos da região como criar um Estado verdadeiramente islâmico. E começaram a aplicar a lei da Sharia à força. A morte passou a ser o destino de quem se desviava do caminho do Islão. Mais tarde, envolvendo-se no conflito que estalava na Síria, os métodos foram semelhantes. Esta fração da Al-Qaeda queria impor a lei islâmica no país, mas os métodos tinham evoluído em termos de brutalidade e violência. E foi demais até para o grupo anteriormente liderado por Bin Laden.

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As diferenças entre os dois eram já incompatíveis e separaram-se. Forma-se então o autoproclamado Estado Islâmico. Em 2014, o seu líder Abu Bakr al-Baghdadi anunciou o estabelecimento do califado e autodenominou-se califa. Ou seja, o objetivo era unir todo o mundo árabe num só Estado sob a verdadeira interpretação da lei islâmica. 

A nova e a velha guarda do terrorismo

Os dois grupos são até semelhantes na sua oposição ao Ocidente e nas intenções da destruição do mesmo. Mas a Al Qaeda nunca quis avançar, tão rapidamente, para um califado:

Você deve pedir-lhes para evitar insistir na formação de um Estado islâmico neste momento, mas para trabalhar em quebrar o poder do nosso principal inimigo atacando as embaixadas americanas em África (…) Devemos salientar a importância do timming do estabelecimento do Estado Islâmico.”

Esta é mais um dos pedidos expressos numa carta escrita, alegadamente, por Bin Laden ao futuro chefe de operações da Al Qaeda, Atiyah Abd l-Rahman (quando a expressão “Estado Islâmico” é utilizada nas cartas não se referem à organização mas sim à proclamação do califado). Ou seja, ao contrário da organização liderada por al-Baghdadi, não existia a intenção de ocupar territórios mas sim de atacar o maior número de alvos ocidentais, nomeadamente americanos, e matar os seus cidadãos. Os ataques que fossem bem-sucedidos na Europa e nos Estados Unidos acabariam por juntar cada vez mais seguidores à causa para formar um movimento global de muçulmanos capazes de derrotar o avanço e domínio ocidental. Mas o seu alvo principal estava bem identificado: os Estados Unidos da América.

Eles (os ‘irmãos’ do Yemen) devem evitar atingir o exército e a sede das forças policiais, e anunciar regularmente que não estão a atingi-los, mas sim os americanos que estão a matar as nossas famílias em Gaza”, lê-se na mesma carta.

Os alvos do autoproclamado Estado Islâmico não se cingem apenas aos americanos. O grupo começou por atacar aqueles que estavam mais perto: os regimes apóstatas xiitas da Síria e do Iraque e todos os que os defendem. Bem como, todos aqueles que negam a santidade do Corão e desrespeitam as leis da Sharia segundo a sua ultraconservadora interpretação da mesma. A implementação do califado era para avançar, e o mais cedo possível.

A avaliar por esta mudança de paradigma, parece ter chegado ao fim uma velha guarda do terrorismo, já radical e extremista, para uma nova geração que tenta impor uma visão ainda mais conservadora da lei islâmica. 

No entanto, os últimos atentados terroristas reivindicados pelo Daesh, como os atentados em Paris dia 13 de novembro e ao avião russo no deserto egípcio do Sinai, refletem uma, alegada, tentativa de mudar o alvo da sua atuação indo mais ao encontro das anteriores pretensões de Bin Laden. Atacar o coração do Europa, e matar o maior número de cidadãos ocidentais possível, parece ser agora o objetivo. A perda de território e os cortes no financiamento da organização, promovidos pelas ofensivas militares quer da coligação liderada pelos EUA, da Rússia, dos peshmerga curdos ou do exército sírio, serão a consequência disso mesmo.

Mas esta nova geração do terrorismo vai para além dos métodos de ocupação e imposição da ideologia radical islâmica. Adapta-se a uma sociedade moderna, globalizada e ligada através do online. Se antes se recorria a vídeos onde se recitavam longas passagens e ensinamentos do Corão, hoje a difusão de imagens espalhando a brutalidade e os ideais jihadistas através das redes sociais assentaram que nem uma luva na sociedade moderna. Esta máquina propagandista baseada na Internet possibilitou ao Estado Islâmico chamar à sua causa milhares de muçulmanos europeus e cada vez mais jovens espalhados pelo mundo. O que permitiu, também, abrir o seu teatro de operações um pouco por todo o globo criando-se células e ligações nos mais variados países.

O Daesh começou a implementar uma política de financiamento quase inédita entre estes tipos de organizações terroristas. Como consequência do crescimento territorial a produção petrolífera em várias zonas do Iraque e na Síria ficaram nas suas mãos que as controlam como uma autêntica multinacional da indústria. São contratados desde engenheiros a comerciais pagos com elevados ordenados e a estratégia de venda baseia-se em vender o produto, no mercado negro, com um preço mais baixo do que praticado internacionalmente.

Tudo isto permite ao Estado Islâmico produzir, só no Iraque, e em média, cerca de dois milhões de barris por dia e ganhando, no total, calcula-se, 40 milhões de dólares por mês (cerca de 37 milhões de euros). Panorama muito diferente de um financiamento baseado em contribuições de aliados à Al Qaeda e muitas vezes em segredo e à revelia dos holofotes mediáticos.