Tinha algo marcado na agenda. Abriu a porta, saiu de casa, fechou-a e lá foi. Tinha quase quatro quilómetros para percorrer. Se escolheu enfiar-se debaixo de terra, apanhar o metro na estação de El Behoos, ou dar que fazer às pernas, numa caminhada, não se sabe. O destino de Giulio Regeni era o centro do Cairo, a Praça Tahrir, o restaurante onde se combinara encontrar com um amigo, também italiano, professor na Universidade Britânica da cidade. Era 25 de março, que o simbolismo quis que assinalasse os cinco anos desde o início de uma revolução, da que depôs um ditador com a luta nas ruas, as que se encheram de protestos, milhões de pessoas unidas e manifestações. Era um dia de memórias. E foi o último dia que Giuliu foi visto com vida no corpo.
Nunca chegaria ao restaurante. Gennaro Gervasio, o amigo, ficou pendurado, à espera de uma chegada que só nove dias depois se percebeu porque não correspondeu à partida: a 3 de fevereiro, Giulio foi encontrado morto, cadáver deixado numa vala perto de uma autoestrada que corta o deserto entre o Cairo e Alexandria. As más notícias são as que mais rápido viajam e Fiumicello, a sua terra natal, no norte de Itália, já chorava quando o resultado da primeira autópsia ao corpo, no Egito, concluiu que Giulio fora atingido por “um golpe violento na cabeça” com “um objeto afiado”. Tinha o corpo coberto de nódoas negras, feridas e marcas de cigarro. Mas só uns dias depois se descobriu “algo animal”.
As cerimónias fúnebres puxaram o corpo para Itália, onde uma segunda autópsia estava à espera de ser feita. Aí se constatou que Giulio sofrera um tratamento “que não era humano” porque as autoridades italianas mostraram o que as egípcias não viram, ou preferiram não ver. O italiano tinha o corpo queimado, sete costelas partidas, uma hemorragia cerebral, marcas de agressões várias e, sobretudo, vestígios de tortura: unhas arrancadas e marcas de eletrocussão no pénis. Começava-se a falar no caso. Jornais, rádios e televisões italianas pegaram-lhe, deram-lhe destaque. As pessoas corresponderam, os políticos que os representam reagiram, o tema chegou ao governo.
“Dissemos aos egípcios: a amizade é um bem precioso, mas só é possível com base na verdade. Até agora, todos os nossos pedidos foram correspondidos e, acima de tudo, exigimos que todos os elementos sejam colocados em cima da mesa”, explicou Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano, à Radio Anch’io, já depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros se ter dirigido ao país sobre o assunto. Porque, mais do que a morte de Giulio Regeni, estranha é a forma como um italiano, de 28 anos, que vivia em Inglaterra há dez — era aluno de doutoramento na Universidade de Cambridge –, e estava no Cairo a investigar sindicatos de trabalho, foi morto no Egito. Quem o fez, e porquê?
Um mês após o seu desaparecimento, nada se sabe.
Quando o desconhecimento deixa a folha branco, o lápis dos rumores aparecem de todo o lado. O que mais se tem lido e ouvido são especulações, que o The Guardian, um dos jornais que mais tem acompanhado o caso, juntou. Na capital egípcia, Giulio dedicava-se a vários trabalhos de investigação sobre relações laborais e sindicatos de trabalho.
Giulio Regeni
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Tinha 28 anos, passara os últimos 10 em Inglaterra, a estudar na Universidade de Cambridge, onde estava a tirar um doutoramento.
Falava cinco línguas (italiano, inglês, espanhol francês e árabe) e quem o conhecia diz que era um comunicador nato.
Um tópico sensível no país: o diário inglês, citando fonte da Universidade Americana do Cairo (AUC), escreveu que, desde 2011, pelo menos três pessoas foram detidas ou deportadas do Egito por estudarem estes assuntos. “O assassinato de Giulio não é um acidente isolado”, lia-se, numa tarja colocada por ativistas políticos no campus dessa instituição, na passada semana. Em Itália, a imprensa não larga o caso e tem sugerido que Regeni não se dedicaria apenas a investigações laborais.
Protegido por um pseudónimo, Giulio escrevia para o ll Manifesto, um jornal italiano, de conotação comunista, sobre o regime de Abdel Fatah el-Sisi, chefe das Forças Armadas do Egito, que chegou ao poder em junho de 2014. Tanto se escreveu em jornais transalpinos que a família de Giulio já teve publicamente negar a hipótese de que o estudante, de 28 anos, trabalhava para os serviços secretos italianos. Se não o era, isso torna ainda ainda estranho o seu homicídio.
“Ele pode ser sido detido e torturado devido a uma espécie de histeria anti-estrangeiros e anti-investigadores, na qual talvez tenham ultrapassado a linha e não podiam voltar atrás. Porque não podes simplesmente livrar-te do corpo de um estrangeiro que tenha sido torturado. Estarias a expor ao mundo o que o país faz atrás das grandes”, argumentou Marina Calculli, professora na Universidade George Washington, nos EUA, que já trabalhou no Egito e na Síria, ao falar com o The Guardian.
A tortura, as mutilações, as unhas arrancadas e as eletrocussões, tudo corresponde ao modo como, por norma, as forças especiais do Exército egípcio lida com detidos, manifestantes anti-regime ou criminosos. A investigação do governo do país, por enquanto, tem-se focado nos amigos e conhecidos de Giulio. “Conhecia muita gente no bairro onde morava. Ainda estamos a tentar determinar com quem ele se dava mais, quem era os seus amigos ou se tinha problemas com alguém”, revelou Ahmed Nagy, procurador de justiça egípcio, antes de indicar que o apartamento de Regeni foi revistado pelas autoridades apenas cinco dias após o corpo do italiano ser descoberto.
Em breve, contudo, agentes da polícia e membros das forças de segurança do Exército vão começar a ser questionados — algo com o qual, aliás, o governo italiano tem insistido. “A recolha desses depoimentos vai acontecer, embora ainda não nesta fase. O interrogatório da polícia não terá como base o seu envolvimento no caso, mas no conhecimento que têm dele”, enalteceu, contudo, Ahmed Nagy. O Executivo italiano informou esta semana que já enviou uma equipa de investigação para o Cairo, com instruções para que colaborem com as autoridades egípcias. Há relatos, porém, de que os peritos italianos têm tido acesso condicionado aos detalhes da investigação às causas da morte de Giulio Regeni.
O italiano era um jovem dotado. Dedicava-se aos estudos e ao trabalho, falava cinco línguas (italiano, inglês, espanhol, francês e árabe), um tipo de pessoa que não atrai críticas. “Era generoso, calmo e respeitador, com dotes naturais para a comunicação, que faziam dele um diplomata natural, um construtor de pontes entre pessoas”, descreveu-o, num quase lirismo, Pau Zarate, um amigo.
É devido à morte deste estudante que ninguém sabe explicar ou identificar os culpados, que as relações entre Itália e Egito ameaçam ficar na corda-bamba. E há várias coisas em jogo, como a Eni, multinacional petrolífera italiana, anunciou o ano passado a descoberta de um poço de gás natural no Egito, vital para satisfazer a procura do país por este combustível. “Eles querem sangue, querem que alguém em específico seja identificado e culpado”, disseram fontes do Ministério dos Negócios Estrangeiros egípcio, ao The Guardian. O problema, um mês após o desaparecimento de Giulio Regeni, rumores, especulações e incertezas são as únicas coisas que a investigação tem dado aos dois países.